Acordar numa América dividida: Trump não foi um acidente

Às primeiras horas da manhã, quando uma frincha de luz já entrava pela janela, acordei ao som de helicópteros a sobrevoar Los Angeles. Saltei da cama para ir buscar o telemóvel e perceber se tinha acontecido alguma coisa nas poucas horas que dormi, depois de a maratona do dia eleitoral ter terminado sem resultados. Mas as contas estavam quase na mesma: Joe Biden tem 225 votos no Colégio Eleitoral, Donald Trump tem 213. Um deles terá de chegar aos 270 para ser declarado presidente dos Estados Unidos da América.

"Sinto-me bastante confiante de que Biden vai ganhar, mas também estou convencido de que Trump se vai declarar arbitrariamente vencedor", disse ao DN o professor de Física Raymond Bergstrom, ao início da noite. "Depois levará semanas para se contar tudo." A sua previsão tornou-se realidade quando já passava das duas da manhã em Washington, D.C., quando Donald Trump fez uma declaração ao país declarando-se vencedor e dizendo que ia pedir ao Tribunal Supremo que parasse a contagem dos votos. A declaração foi recebida com repúdio nas televisões, que apontaram o facto de ainda haver milhões de votos por contar e não fazer sentido parar a contagem para satisfazer o candidato que vai à frente.

Acordar na América com este estado de coisas permite pelo menos ter a certeza de que uma boa parte do eleitorado está contente com Donald Trump , e questões como 230 mil mortos por covid-19, desemprego maciço e crianças metidas em jaulas na fronteira não beliscaram o seu apoio ao presidente. Inclusive, em estados como a Florida, reforçaram-no. Os democratas tinham antecipado poder levar este swing state, mas tornou-se claro, ainda a noite não ia a meio, que uma forte coligação de hispânicos daria a Florida a Trump em 2020. Foi um resultado que assentou bastante nos cubanos e nos venezuelanos que vivem no estado e acreditaram quando Trump ameaçou que se Joe Biden ganhasse, a América se tornaria num país socialista, com direito a sistema de saúde pública e educação gratuita.

O enorme aumento da participação eleitoral está plasmado nos totais que já foram contabilizados: Joe Biden está quase nos 69 milhões de votos e Trump vai nos 66 milhões. Em 2016, Clinton tinha vencido o voto popular com cerca de 66 milhões de votos e Trump teve quase 63 milhões.

Isto significa que, em 2020, o presidente não só não foi castigado pelo eleitorado como aumentou de forma substancial o seu apoio, ainda que Biden esteja bastante à frente na contagem. A sua eleição em 2016 não foi um acidente e parece ter havido uma sobrestima aguda dos eleitores arrependidos, embora seja ainda necessário escrutinar os resultados para perceber quem votou em quem.

A esta hora, início da manhã na Califórnia, os resultados indicam que Donald Trump aumentou o seu apoio junto do eleitorado hispânico e negro e viu decrescer a sua base junto dos eleitores brancos e suburbanos. Uma análise que não é inesperada - já tinham aparecido indicadores disto nas sondagens - mas ainda assim notável, tendo em conta os protestos em massa que abalaram o país desde maio, por causa da morte do afro-americano George Floyd, e da controvérsia em torno das milícias de supremacistas brancos que o presidente não quis condenar.

Com Joe Biden confiante de que tomará a dianteira na Pensilvânia quando os votos por correspondência forem todos contabilizados, permanecem dúvidas quanto aos estados cruciais do Michigan e do Wisconsin. Há também latitude para desafios legais, depois de episódios preocupantes no serviço postal no dia da eleição: a USPS recusou-se a acatar a ordem de um juiz para varrer as estações de correios e entregar centenas de milhares de votos que deviam ter sido entregues às autoridades eleitorais. Se as margens entre Biden e Trump forem tão curtas como se espera, é possível que estejamos só no início de uma longa semana - ou mês - eleitoral.

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