Resposta à crise da utopia da ONU

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A ordem da ONU foi afetada pela exigência da Ordem dos Pactos Militares - NATO e Varsóvia -, enquanto, na ONU, pela primeira vez na história da humanidade, todas as áreas culturais falavam, em liberdade, dos seus valores e sonhos de futuro. As parcelas do império euromundista foram eliminando os poderes coloniais de que dependiam, em todas com conflitos militares, em que se incluiu a chamada guerra colonial portuguesa. É nesta situação que temos de tentar ajudar a encontrar resposta para o tema da inserção global no mundo pós-ocidental, reformulando a utopia da ONU.

Em primeiro lugar, tomar boa nota de que, entre as parcelas do império euromundista, a situação portuguesa tem características específicas: falhou a iniciativa francesa de uma articulação euroafricana, com uma cooperação que desapareceu sem certidão de morte; falhou o projeto da União Francesa, ambição do general De Gaulle, que se assumiu desconsiderado pelo voto negativo da Guiné; falhou o projeto inglês de manter unido o império da Índia, que originou três países; a Guerra da Argélia ainda tem sequelas visíveis.

Portugal foi o único Estado que conseguiu, com o apoio decisivo do Brasil, organizar a CPLP e o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, e será imprudente não enfrentar a crise que se adensa na circunstância deste 2019, início de 2020. A explicação teórica então mais invocada foi o lusotropicalismo, devido sobretudo a Gilberto Freyre, com o seu Instituto do Recife. Todavia, os períodos de organização democrática da Europa Ocidental viram agudizar críticas baseadas em afirmado comprometimento de Gilberto com a política portuguesa do chamado Estado Novo, que no Brasil foram acompanhadas no sentido de o acusarem de amenizar, sem critério científico, o colonialismo do passado brasileiro.

Todavia, o seu grande crítico Fernando Cardoso, quando presidente do Brasil, declarou o ano de 2000 como Ano Gilberto Freyre; o ilustre Darcy Ribeiro, marxista ativo e perseguido, também portanto crítico de Gilberto, deixou escrito o seguinte: assim como a Itália seria outra sem Dante, a Espanha seria outra sem Cervantes, Portugal seria outro sem Camões, o Brasil seria outro sem Gilberto. A maneira portuguesa de estar no mundo, que tem de ser recebida sem "benefícios de inventário", está certamente entre as causas deste resultado único no desagregar do império euromundista, e precisa de ser averiguada com rigor, mas sem rejeição. Isso não impede que avultem neste problema os embaraços que sobretudo resultam da desordem mundial em progresso, com a ONU adormecendo durante o meio século da Ordem dos Pactos Militares, mais dificuldades específicas dos países em que se dividiu o Terceiro Mundo libertado.

Entre tais dificuldades, relevam as seguintes: enquanto o Ocidente, responsável pela Carta da ONU, aderiu a um conceito geral de Estados democráticos, a herança das antigas colónias foi a do governo extrativo, com fronteiras desenhadas em geral por acordo ou desacordo dos colonizadores, invocando não o valor Estado-Nação, mas sim o valor nativo que se traduziu no grito - deixem passar o meu povo. Infelizmente, o modelo Estado extrativo é o que mais se destaca. O enfraquecimento da solidariedade atlântica, com a política errática da presidência americana, e, no que nos respeita, a inquieta situação do Brasil fizeram que as famosas previsões do abade Correia da Serra, ao escrever ao seu amigo Jefferson, considerando que os EUA seriam os orientadores do norte do continente e o Brasil a referência do sul, estejam em suspenso.

A União Europeia, sem conceito estratégico, está enfraquecida pela relação dos eleitorados com a governança, atingida pela crise económica e financeira, de facto dividida entre uma Europa pobre (Chipre, Grécia, Itália, Espanha, Portugal), que é praticamente o antigo Império Romano, e a Europa rica do norte em relação a esse sul pobre; acresce o Brexit do Reino Unido e o facto de, pela primeira vez na história da humanidade, estar nas mãos de governantes inquietantes o poder de destruir a própria terra, bastando pensar na organização da Coreia do Norte e na fragilização da solidariedade atlântica.

Por tudo, a questão do lusotropicalismo é, sobretudo, a de aceitar que cada membro dessa união tem de responder às suas exigências específicas, mas sem perder a voz portuguesa de todos, acreditando que, repetidamente, o poder da voz é capaz de vencer a voz dos poderes. Sobretudo dos que imaginam poder agir solitários.

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