A crise do multilateralismo
O fim da guerra de 1939-1945 teve, entre os seus objetivos de uma ordem mundial, de agir de modo a conseguir que os princípios dos legados maquiavélico e humanista pudessem ficar subordinados a uma coerência respeitadora da paz. Parecia evidente, pela experiência dos passados conflitos, sobretudo militares, que se tratava mais de utopia do que de viabilidade da total nova ordem mundial pacífica. Designadamente, no ano da celebração do cinquentenário da ONU, Michael Berenbaum publicou o seu livro intitulado The World Must Know - The History of the Holocaust as Told in the United States Holocaust Memorial de 1944, concluindo que os aliados, desde junho de 1944, tinham meios de bombardear o campo à sua vontade, e Elie Wíesel sustenta que "simplesmente salvar os judeus não era uma prioridade nem para os ocidentais nem para os soviéticos, quando acompanhou o livro de David Weyman intitulado The Abandonment of the Jews.
O que mais chama a atenção não é a inevitável polémica sobre o rigor das conclusões, mas a mensagem básica de que a herança da tese seria que a relação querida entre os princípios conhecidos pela utopia da ONU não manteriam uma relação fácil. Foi talvez essa a previsão mais imperativa que levou o antigo secretário-geral da ONU, o budista U Thant, lembrando-nos Torga quando proclamou que é necessário gritar e não há quem grite, a enumerar o que chamou o quarto grito da humanidade: "Pela santidade da vida, por uma educação para a paz, por uma escala de valores respeitada, por uma espiritualidade renovada... Por mim, os aspetos morais e espirituais da vida são de longe mais importantes do que os aspetos físicos e intelectuais da vida..."
Neste ano de 2020, circula uma questão fundamental sobre a avaliação do que resta do multilateralismo da ONU, merecendo atenção a pergunta de Alain Dejamnet (Ramses - 2020) sobre "o que resta do multilateralismo das Nações Unidas?", salientando que "em matéria política, o multilateralismo do Conselho de Segurança se transformou em negociações entre potências. Importa antes de mais que exista um diálogo, em primeiro lugar logo que é visível o recurso à força, devidamente enquadrado pela Carta".
O que a realidade mostra, nesta meditação sobre a paz, é que as migrações resultam frequentemente numa inquietante morte dos abandonados imigrantes pelo afogamento no Mediterrâneo, ou pela eficácia do governo dos EUA em relação à tormenta dos que procuram libertar-se das amarguras do sul do continente, onde a América Latina desiste de alargar o espaço da vigência da democracia, com dominantes populismos, atingindo vítimas do tráfico das drogas e da violência implícita, e onde a Venezuela sofre, sem apoio de valia suficiente, parecendo condenada a exemplo da incapacidade de intervenção eficaz das instâncias internacionais que nem podem evitar o alargamento constante da incapacidade de fazer respeitar os direitos humanos da Declaração Universal.
Lembrando como referência do abandono do direito e da ética, a falta de lealdade ao Tratado de Paris, e a participação humana reconhecida na perigosa evolução da Terra, tem sido oportuno lembrar um sábio, que foi Teilhard de Chardin, da mesma ordem do Papa Francisco, que, na China em que passou anos de vida anteviu que a marcha do mundo, de vozes múltiplas, para a unidade, previa encontrar os humanos subordinados à "unificação, tecnificação, racionalização crescente da Terra Humana", mas isto não evitaria os efeitos negativos dessas correntes ameaçadoras.
De facto, os riscos, as ameaças, incluindo conflitos armados, não são todos existentes, mas o nível alcançado é inquietante. Mas uma inquietação mais severa é a capacidade de ter reduzido à paralisação a intervenção do multilateralismo, multiplicando as relações dos emergentes, aceitando a falta de governança global.
Por enquanto, na própria ONU não faltam vozes, com responsabilidades na gestão da instituição, procurando repor em vigor o que foi o utopismo mais importante do estatuto da ONU. A exigência da cooperação imperativa não é um valor abandonado pela história, e a recuperação tem uma exigência que é urgente e legítima.
Infelizmente não é o regresso ao multilateralismo que anima uma nova supremacia do regresso à ética global, designadamente porque faltam vozes encantatórias que corrijam as crescentes ambições de interesses dominantes e os populismos, de que velhas potências permitem que o tédio elimine as confianças que as autoridades governativas devem merecer dos eleitorados.
Acontece que a decisão do governo turco e a resposta imprudente das autoridades gregas fazem temer todas as infidelidades à justiça que foi proclamada pela ONU.