“Operação Lex”: um caso singular na história da justiça portuguesa

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A “Operação Lex” representa um caso singular na prática judiciária portuguesa por ter o seu julgamento em primeira instância a decorrer no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o órgão de cúpula da hierarquia dos tribunais judiciais. Na verdade, o sistema judiciário português organiza-se segundo uma estrutura hierárquica tripartida, composta pelos Tribunais de primeira instância, onde os processos são, em regra, iniciados e julgados; os Tribunais da Relação, que funcionam como a segunda instância de recurso; e, no topo, o Supremo Tribunal de Justiça.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 210.º, e a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) definem o STJ como o “órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais”. A sua função primordial é a de apreciar recursos, atuando como um tribunal de “revista”. Isto significa que a sua intervenção se cinge, em regra, à apreciação de questões de direito, visando assegurar a correta interpretação e a aplicação uniforme da legislação em todo o território nacional. Uma consequência direta desta sua natureza é que ao STJ está, por norma, vedada a reapreciação da matéria de facto que foi fixada e dada como provada pelas instâncias inferiores. A justificação para este julgamento de primeira instância assenta na conjugação excecional de aplicação simultânea de dois institutos do direito processual penal.

O primeiro é o foro especial por prerrogativa de função. Este mecanismo, concebido como uma garantia funcional para salvaguardar a independência de determinados cargos públicos, estabelece que os titulares de certas funções sejam julgados por um tribunal hierarquicamente superior. No caso concreto, a presença de arguidos que, à data dos factos, detinham a qualidade de Juízes Desembargadores no Tribunal da Relação de Lisboa, ativa a competência específica do STJ, conforme previsto no artigo 12.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal. Esta norma determina que compete às secções criminais do STJ julgar os processos em que estejam em causa alegados crimes cometidos por juízes dos Tribunais da Relação. O segundo instituto é o da conexão processual. Este princípio visa garantir a unidade e a coerência do julgamento, evitando o risco de decisões contraditórias que poderiam emergir de processos separados que analisassem os mesmos factos.

Quando existe uma ligação relevante entre vários crimes ou arguidos, a lei determina que a competência para julgar a totalidade do processo cabe ao tribunal de maior graduação hierárquica. No processo “Operação Lex”, o STJ, após recurso do Ministério Público e de vários arguidos, reverteu uma decisão inicial de separação e avocou a totalidade do processo, determinando que todos os arguidos e crimes conexos fossem julgados conjuntamente nesta instância superior, tendo em vista assegurar uma apreciação global e coerente da prova. Esta configuração processual, embora legalmente fundamentada, poderá ter como consequência a eventual limitação do direito ao recurso sobre a matéria de facto. Adicionalmente, a experiência processual (digamos assim) pode ser vista de modo positivo para o sistema judiciário. Ao serem chamados a julgar em primeira instância, os Juízes Conselheiros do STJ, estes Magistrados da mais alta craveira e experiência retomam o contacto direto com os desafios inerentes à produção e valoração da prova, uma realidade processual distante da sua atual função de reapreciação de questões de direito. Esta incursão nas dificuldades do julgamento de facto, similar à experiência do início das suas carreiras, poderá enriquecer a sua perspetiva enquanto julgadores de recurso, promovendo uma maior sensibilidade para com o trabalho realizado nas instâncias inferiores.

Em suma, o julgamento da “Operação Lex” no STJ sendo uma exceção, é o resultado da aplicação rigorosa de normas processuais que, pela conjugação do foro especial aplicável a Magistrados e da força unificadora da conexão, deslocaram a competência para a mais alta instância judiciária do país.

Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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