Oitenta anos de cultura

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Oitenta anos de vida numa instituição cultural da sociedade civil constitui um facto digno de nota. O recente reconhecimento do Centro Nacional de Cultura como membro honorário da Ordem Militar de Santiago de Espada lembra um longo percurso que nos leva ao momento em que, oito dias depois do fim da Grande Guerra na Europa, em maio de 1945, Afonso Botelho, António José Seabra e Gastão da Cunha Ferreira decidiram fundar uma associação visando a defesa e salvaguarda da cultura e do património. Desde as origens o debate de ideias, a reflexão e a liberdade de espírito foram fatores mobilizadores. Fernando Amado e Almada Negreiros deram lugar a um grupo que fez do teatro e das artes um verdadeiro movimento que daria origem à Casa da Comédia. Jovens artistas como Lurdes Castro e José Escada fizeram do Centro um lugar de ideias novas e prometedoras. Afonso Botelho, José Marinho, Almada Negreiros, Gabriel Marcel, António Quadros e Eduardo Lourenço fazem do pensamento um ponto de encontro e de diálogo. O grupo inicial de monárquicos, com Gonçalo Ribeiro Telles, João Camossa, Francisco Sousa Tavares e Augusto Ferreira do Amaral, foi-se alargando, para criar um espaço amplo de liberdade e de democracia. Helena Cidade Moura, António Alçada Baptista, o Padre Manuel Antunes e Sophia de Mello Breyner Andresen atraiam poetas, artistas e escritores, num tempo em que a censura estabelecia as suas imposições. Um dia, Frei Bento Domingues é chamado à polícia política para prestar declarações e de modo desafiante diz que na Rua António Maria Cardoso apenas conhece o Centro Nacional de Cultura. A vigilância policial não passa despercebida. Com Sophia, a Comissão de Apoio as Presos Políticos tem aqui a sua sede clandestina. Paredes meias com a Livraria Moraes e a revista O Tempo e Modo respira-se um clima de liberdade. A Associação Internacional para a Liberdade da Cultura com Pierre Emmanuel encontra no Centro uma representação muito ativa que se multiplica em atividades de debate e reflexão. É a democracia que se prepara num espaço de tolerância e pluralismo, com Jorge Sampaio, Jaime Gama, Eduardo Prado Coelho, Gastão Cruz, Nuno Júdice, Fiama Hasse Pais Brandão. Sophia, antiga presidente, dirá: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Francisco Sousa Tavares é o primeiro civil a falar em 25 de abril do cimo de uma guarita no Largo do Carmo para saudar a revolução. José-Augusto França é o primeiro presidente depois de Abril. Helena Vaz da Silva, com grande entusiasmo, primeiro com a revista Raiz e Utopia, ao lado de António José Saraiva, e depois já à frente dos destinos do CNC, reinventa-o, sob a inspiração do conto de José Régio “Davam grandes passeios aos domingos” e faz da militância em prol dos roteiros culturais uma marca indelével. Depois virá no Conselho da Europa e na UNESCO a influência decisiva das Jornadas Europeia do Património e os ciclos “Ao Encontro da nossa História” envolvendo historiadores e artistas. Na Europa Nostra, o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva torna-se marcante. E graças a essa influência e à coordenação portuguesa, o Conselho da Europa aprovará a Convenção de Faro, assinada em Portugal, sobre o Valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea. Não cabe nestas linhas a descrição de tudo o que tem sido feito. Fica apenas uma memória viva, que continua.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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