O supremo tribunal dos EUA versus Humanidade

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Em 1866, o nosso Eça de Queiroz escreveu um notável artigo sobre a complexidade da alma cultural dos EUA. Nela convergem e conflituam o idealismo da liberdade e da igualdade de oportunidades, com a idolatria da riqueza material ("o "deus-dólar", na expressão de Eça). A vitalidade democrática dos EUA tem superado os seus demónios pela firmeza da ordem jurídica, alicerçada numa Constituição federal que junta solidez e flexibilidade, servida por uma riquíssima exegese filosófica, jurídica, pedagógica, fomentada pelos tribunais, escolas, imprensa, e líderes políticos de que a história guarda memória.
Desde há quatro décadas, contudo, que o "deus dólar" impera crescentemente, numa desmesura até aí nunca atingida, no desenho das políticas públicas. O serviço do interesse comum, começou a ser cronicamente substituído pelo organizado espírito de "fação" de interesses instalados, aguerridamente representados no poder legislativo. Desde 1997, o Congresso conseguiu paralisar todas as iniciativas presidenciais em políticas ambientais relevantes, e em particular nas que dizem respeito às alterações climáticas. O dinheiro das empresas de combustíveis fósseis financia, às claras, republicanos e democratas. Nas presidências de G. W. Bush e Trump reinou o negacionismo mais boçal. Mas nem Clinton nem Obama conseguiram passar das boas intenções para a realidade. Há uma lista de leis e planos que nunca saíram do papel. Os EUA não só abdicaram da liderança global no combate à crise ambiental e climática - o maior desafio existencial da história humana - como têm sido um travão aos tímidos passos que a UE tem protagonizado nesse domínio.

Mergulhados num universo mediático que vende propaganda em roupagem informativa, descuramos o que é realmente importante. No passado dia 30 de junho, operou-se um salto qualitativo no ataque a um princípio vital do sistema representativo: a separação e equilíbrio entre poderes, numa lógica de pesos e contrapesos. O Supremo Tribunal (o mesmo que reintroduziu a tragédia do aborto ilegal) exorbitou de modo ostensivo as suas competências constitucionais. Num acórdão - tecnicamente medíocre e tresandando a ideologia - arrancou à EPA (Agência federal de Proteção Ambiental) as suas legítimas competências para o combate às emissões de gases de efeito de estufa, através de uma estratégia articulada contra as alterações climáticas e pela transição para energias renováveis. A decisão foi apoiada por 6 juízes contra 3. Numa declaração anexada ao acórdão, a juíza Elena Kagan, secundada pelos outros dois colegas dissidentes, demonstra como através deste ignóbil acórdão - que entrega ao Congresso competências políticas e técnicas da EPA pertencentes em exclusivo ao poder executivo -, o Supremo Tribunal deixou de ser o árbitro e garante da Constituição para se transformar no principal inimigo da Lei fundamental. Os juízes do Supremo Tribunal dos EUA não se limitaram a abrir mais uma ferida no corpo de uma nação à deriva, mas deram carta branca para que a passividade ambiental de Washington se transforme numa guerra aberta contra o futuro da humanidade inteira. Com uma sociedade civil fraturada e flagelada por uma violência e crispação endémicas, o farol da democracia estado-unidense bruxuleia na degradação do federalismo em plutocracia. Se juntarmos a isto uma guerra europeia que ninguém quer acabar, dizer que estamos no mais perigoso tempo das nossas vidas pode ser tudo menos alarmismo.


Professor universitário

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