O regresso do parceiro relutante
Muito aconteceu em três anos de guerra na Ucrânia. Desde logo, o impossível. Dizia a convicção geral, vertida na extensa literatura dedicada a conflitos armados, que a beligerância entre Estados era um artefacto museológico empoeirado, vestígio de um mundo desaparecido com a queda do Muro de Berlim.
No caso específico do continente europeu, além de artefacto, a guerra era um delírio. A crescente integração entre Estados-membros, e destes com os seus vizinhos a Sul e a Leste, eliminaria qualquer incentivo à violência. A circulação de mercadorias e ideias traria sossego e prosperidade para todos.
Até que Putin estilhaçou as convenções. Ao contrário do que se pensou durante anos em Bruxelas, tanto nas instituições europeias como na NATO, a Federação Russa não é um parceiro relutante, mas um adversário hostil e revisionista.
Os sinais eram claros: antes de invadir a Ucrânia, a Rússia invadiu a Ossétia e a Abecásia, condicionou actos eleitorais na Europa a favor de partidos iliberais ou abertamente anti-democráticos, assassinou dissidentes em território europeu e cometeu violações grosseiras dos Direitos Humanos na Síria em apoio ao torcionário Bashar al-Assad. Ao mesmo tempo, dentro de fronteiras, Putin garrotava a oposição e, por força de uma trágica e teimosa coincidência metafísica, os oligarcas recalcitrantes precipitavam-se por janelas de todo o país.
A distensão e a concórdia promovidas pelas lideranças europeias nas últimas décadas foram usadas por Putin para minar a ordem internacional criada no pós-Segunda Guerra Mundial. Eis a melhor forma de cruzar uma linha vermelha: tão devagar que só percebemos o que está a acontecer quando a linha já foi atravessada.
A paz terá de ser negociada e a Ucrânia perderá parte do seu território. Mas importa não esquecer o lastro que nos trouxe até aqui. E redobremos cuidados, uma vez que os extremos europeus - sobretudo o esquerdo - transformaram a palavra ‘paz’ num significante vazio posto ao serviço do invasor.
A proposta de cessar-fogo de 30 dias avançada por Washington e aceite por Kiev colocou a bola no campo da Rússia. Os Estados Unidos da América retomaram o apoio militar à Ucrânia e o G7 está disponível para endurecer sanções. Os 26 países que apoiam a Ucrânia, a coalition of the willing, reunirão na quinta-feira em Londres para definir a “fase operacional” que garantirá segurança durante a trégua.
Putin voltou ao registo de parceiro relutante: está de acordo, exala boa vontade, mas diz ser necessário resolver as motivações do conflito. Não quer monitorização do cessar-fogo no terreno, talvez com a intenção de manter vivo o velho costume de violar acordos. Propõe eleições livres - na Ucrânia, claro - com a esperança de substituir Zelensky por um títere mais ameno. E teme que o cessar-fogo dê aos ucranianos a possibilidade de se reorganizarem e rearmarem. Isto é, teme que a Ucrânia faça agora o que fez a Rússia com os Acordos de Minsk, em 2014.
Traduzindo, estamos onde sempre estivemos. Moscovo mantém uma agenda maximalista, que rejeita a existência da Ucrânia enquanto Estado soberano e independente.
Os próximos tempos serão de avanços e recuos, momentos de vertigem e cedências mais ou menos tangíveis. Para a Europa, a escolha deverá ser clara: ou a Ucrânia se torna uma fronteira externa da União ou será um posto avançado de Moscovo.
Politólogo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.