O pré-acordo comercial UE-EUA e a lei da selva

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O direito comercial internacional é regulado por acordos multilaterais globais sob a égide da OMC e inúmeros acordos multilaterais regionais (UE, USMCA, Mercosul, AFTA, CPTPP, CEI, AfCFTA, TiSA) e bilaterais de comércio livre. Para além da instabilidade e incerteza geradas pelo vendaval mediático criado pelos constantes avanços, recuos e suspensões de tarifas e pré-acordos anunciados, a postura do governo dos EUA configura o primado do mais forte, uma violação clara das regras a que os EUA estão obrigados no que tange ao comércio internacional, desde grosseiras violações dos tratados e do acordado em sucessivas negociações de décadas, até ao princípio basilar da cláusula da nação mais favorecida.

A “paixão” tarifária de Trump visa reequilibrar a balança comercial dos EUA, estimulando a reindustrialização no país através do reshoring, e, do mesmo passo,  aumentar a receita governamental; com alguma sorte – e muito wishful thinking – levaria ao fim de décadas de défice orçamental, permitindo começar a diminuir a gigantesca dívida pública federal.

Para além destes motivos clássicos existem outras motivações: (i) pôr muitos países a pagar um tributo pela Pax Americana a nível mundial e pela função do dólar como principal divisa do sistema de pagamentos comerciais internacionais; (ii) punir países (ex: Brasil) por decisões soberanas internas que desagradam ao capo americano; (iii) punir países que são aliados da China (ex: Laos e Cambodja) ou que os EUA suspeitam ser bases de transhipment de produtos chineses (ex: Vietname).

Apesar de ameaças de tarifas altas, o governo americano vai regularmente recuando – o famoso efeito T.A.C.O. – quando encontra quem lhe faz frente (China) ou quando as bolsas de valores caem por receio da inevitável inflação por via da importação e/ou da incerteza e instabilidade criada.

No caso do recente pré-acordo comercial entre a UE e os EUA, há vários aspetos que merecem realce. Um, é a confirmação do lamentável estado de dependência da Europa em relação a uma América predatória. Ora, se em matéria de defesa militar a Europa depende bastante dos EUA, tal não sucede em matéria comercial; o que torna inaceitável a humilhante aceitação de termos completamente desiguais.

Outro, é a prevalência do mediatismo nos números anunciados – em especial nas aquisições de produtos energéticos, com números “delirantes” (é assim que a Reuters classifica o compromisso de compra de 750 mil milhões de dólares em GNL em 3 anos) e impossíveis de concretizar (quem compra gás e petróleo são empresas, não os estados, nem a UE). Mas o mais lamentável foi a líder europeia, um bloco político e económico onde vigora o primado do Direito, incluindo o direito internacional, haver dado cobertura à postura de Trump de destruição das regras e princípios consagrados internacionalmente e caucionar o regresso à lei da selva.

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