O presente de Natal

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Quando há dias foi conhecido o desfecho da «acção de prevenção» que correu no Ministério Público (MP) envolvendo o Primeiro-Ministro,o Presidente da República e várias outras figuras públicas apressaram-se a assinalar:«É a justiça a funcionar».

Essa é uma fala que induz em erro,aumenta o grau de confusão imperante àcerca do que a lei prevê, do que é justiça e do que é administração - e que só pode agravar equívocos e riscos que já impendem sobre o Estado de Direito.Não deve dizer-se menos quando se acolhe assim o alargamento da área de discricionariedade e subtracção a escrutínio por parte do MP, quando se trivializam actividades de carácter administrativo isentas de qualquer controlo externo – e,sobretudo,quando se interpreta tudo isso como sendo « a justiça a funcionar».No caso do Presidente, essa chancela tem a particularidade de vir de quem, noutra veste, poucos anos após a publicação da lei que criou as «acções de prevenção» aqui em causa,sustentava acerca do MP que «em rigor é e continuará a ser Administração Pública, ainda que autónoma».

Sobrevivendo a uma primeira reprovação no Tribunal Constitucional, foi a controversa Lei nº 36/94 que instituiu, como « medidas de combate à corrupção» , o que concebe e designa como «accões de prevenção» (nunca as denominando, aliás, «averiguações» ).Desde então se entendeu que estas «acções» - que compreendem, como lá são designadas, «recolhas de informações relativamente a notícias de factos susceptíveis de fundamentar suspeitas de perigo da prática de um crime» - são de natureza administrativa, e que é administrativo, e não judiciário, o procedimento correspondente.

Só assim pode ser constitucionalmente, como então se decidiu. A prevenção criminal, em que estas acções são expressamente incluídas pela Lei, aparece integrada e parametrizada no título que a Constituição dedica à Administração Pública – e não nos Tribunais. O facto dessa actividade, e em particular as acções de prevenção em causa, terem sido confiadas ao MP, não altera, nem material nem constitucionalmente,a sua natureza. Para o confirmar, basta recapitular os traços que as caracterizam: procedem de juízos de oportunidade e conveniência; decorrem sem prazos pré-fixados pela lei; e estão subtraidas, do primeiro ao último momento, a qualquer intervenção ou controlo judicial.Quem,num Estado de Direito,se atreveria a dizer que,com um panorama assim, estamos perante «a justiça a funcionar»?

Com a nossa Constituição, e em qualquer compreensão básica do Estado de Direito, só poderemos estar perante um procedimento administrativo. Foi isso, e apenas isso, que agora se encerrou: um arquivo administrativo.

E daqui decorrem consequências. Salvo o disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas - a Constituição garante o acesso aos arquivos e registos administrativos.Está deste modo assegurado um nível de conhecimento que não pode ser inferior ao que decorreria de um inquérito (excepcionalmente) sujeito a segredo de justiça. Ressalvando aqueles estritos limites, não pode haver em democracia Administração acima de escrutínio.

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