Recentemente, um incidente no julgamento mais mediático da democracia portuguesa, expôs a tensão que atualmente se vive entre o poder de direção da audiência investido no juiz do julgamento e o exercício do mandato forense pelos advogados, o qual culminou com a renúncia de um dos mandatários ao patrocínio em pleno decurso do julgamento. O motivo foi a deliberação do coletivo de juízes de participar disciplinarmente do advogado à Ordem dos Advogados, na sequência de um atraso a uma sessão. Ao diálogo que se desenrolou em plena audiência, em que o mandatário afirmou “não me vai ralhar”, traçando uma linha de paridade profissional e rejeitando uma postura de subordinação ao coletivo, a resposta da magistrada que presidia foi “acabou a brincadeira”. A troca de palavras na audiência é bem representativa de duas visões distintas sobre o poder do juiz na direção das diligências e quais os limites que se lhe impõem. Em resposta, o advogado em causa apresentou a sua renúncia, invocando “razões deontológicas”. Na sua justificação, argumentou que a continuação no processo violaria de forma “insuportável” a sua consciência, independência e dignidade profissional. O episódio dividiu profundamente a comunidade jurídica sobre a adequação das condutas dos dois intervenientes, entre aqueles que acham que a Juiz presidente ultrapassou os limites do poder de direção e os que entendem legítima e apropriada a “repreensão” do advogado. De um lado, o Código de Processo Penal que confere ao juiz presidente o poder de direção e de tomar “medidas preventivas, disciplinares e coativas” para fazer cessar “atos de perturbação da audiência”. Do outro lado, a Constituição e o Estatuto da Ordem dos Advogados que consagram a independência do advogado e as imunidades necessárias ao exercício do mandato. O que o tribunal pode interpretar como um “ato de perturbação”, a defesa invoca como o legítimo exercício da sua independência contra uma “admoestação”. Com efeito, o uso do poder de direção nas diligências judiciais não confere aos juízes a possibilidade de “admoestar ou repreender os mandatários”. Até porque, do que veio a lume, não resulta qualquer indício de má conduta processual ou de falta de urbanidade do mandatário. O recurso de um magistrado à queixa disciplinar deve, num Estado de Direito, ser claramente ultima ratio em situações limite de más práticas e/ou de falta de respeito pelos demais intervenientes processuais, não podendo a ação disciplinar ser instrumentalizada para, direta ou indiretamente, intimidar mandatários que, aos olhos do magistrado, exerçam o mandato de forma “irritante ou provocatória”. Na realidade, a avaliação do desempenho profissional e axiológico dos advogados compete em exclusivo aos órgãos jurisdicionais da Ordem dos Advogados, nomeadamente, aos Conselhos de Deontologia e ao Conselho Superior. Mal seria num Estado de Direito que o juiz do processo, maxime, no processo penal, pudesse censurar a conduta ético-profissional dos mandatários. A renúncia ao mandato, neste contexto, não pode sequer ser tida como um “abandono” do cliente, mas como a forma encontrada pelo mandatário de reagir processualmente a um exorbitar do poder de direção do magistrado que presidia à diligência. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no Artigo 10º da Convenção (liberdade de expressão) é clara: embora sujeitos a deveres de urbanidade, os advogados beneficiam de “um maior grau de latitude” quando se expressam dentro do tribunal, precisamente para defender vigorosamente os seus clientes. A imposição de sanções ou um ambiente de intimação pode gerar um “efeito inibidor” (chilling effect), que o direito europeu não admite. E este mesmo contexto normativo, tem respaldo na Constituição da República Portuguesa, na Lei da Organização do Sistema Judiciário e no Estatuto da Ordem dos Advogados. A independência da advocacia não é um privilégio corporativo, mas uma garantia fundamental do direito de defesa dos cidadãos num Estado de Direito. Sem uma defesa livre, destemida e imune a “admoestações” ou “vaticínios axiológicos”, o próprio julgamento justo fica comprometido.Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados