O poder da voz e a voz do poder

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Um dos nossos mais notados cronistas, João de Barros, definindo a sua própria missão de cronista, deixou este comentário: "têm os homens tanto amor à conservação do seu próprio ser quando lhes é possível trabalharem em um modo para se fazerem perpétuos". Isto não significa que não intervenham espíritos que pela ideia da juventude, mantenham uma capacidade até ao envelhecimento ativo. Por exemplo Konrad Adenauer assumiu enfrentar os efeitos da desordem da guerra de 1939-1945 quando, em 1949 já tinha 73 anos, e manteve-se ao leme até 1963; Winston Churchill só aos 66 anos, assumindo dirigir a resistência da Inglaterra entre 1940-1945, voltando ao poder já com 77 anos, entre 1950-1955. O Alcide De Gasperi que, com 64 anos assumiu o cargo de primeiro-ministro da Itália, em 1945 e até 1953, exerceu 8 mandatos. Ainda Robert Schuman que, com 61 anos foi primeiro-ministro da França em 1947. Sem eles não teria surgido o projeto de recuperar a Europa pela unidade, levando à pacificação das cóleras internas dos europeus.

As inquietações graves de hoje, dada a política que tem o seu ponto mais crítico na situação da Ucrânia fez-me lembrar a síntese que escrevi em 2013: "É justamente o relevo crescente das inquietações de cada Estado europeu com os seus interesses privativos, a crise da estrutura europeia e o aprofundamento da sua hesitação entre a Integração na linha federalista e a União na linha da igualdade dos Estados, que faz avultar o facto de a solidariedade EUA e Europa não ser invocada, visivelmente ela estar a enfraquecer, com os EUA a regressarem ao destino manifesto do Pacífico e a considerar o Atlântico uma retaguarda por vezes incómoda. O que ajuda a esquecer que é o Ocidente que está em decadência, que a violenta crise europeia é parte de uma crise mundial sem precedente, e que os países como Portugal veem crescer a situação de Estados exógenos, exíguos, atingidos pela linha da pobreza que fez renascer o limes romano ao Norte do Mediterrâneo. Pelo que não devem omitir ou esquecer o poder da voz contra a voz do poder que emerge, acima daquela linha, ignorando que, sem União, de modelo final ainda não definido, não é apenas a voz de cada Estado europeu, ou a voz da União anarquizada, é a voz do Ocidente que será pelo menos fortemente debilitada no globalismo ainda mal sabido da entrada neste século sem bússola."

É neste grave período que foi tornada pública a declaração de Dalai Lama que tornou público que há quarenta anos a China tinha invadido o seu Tibete, eliminando crentes, desconsiderando os templos, e que ele próprio tinha sido protegido pelo Estado vizinho (União Indiana) que o acolheu. Não tinha nada a reclamar, não tinha ódio a ninguém, nem rancores - "sigam o Papa". O Papa Francisco tomou posse há nove anos e, sendo jesuíta adotou o nome de S. Francisco de Assis que, em importante artigo do Padre Catedrático da Universidade de Coimbra, Anselmo Borges, o que tinha ouvido Cristo dizer: "repara a minha Igreja em ruínas". Este ato papal passa-se quando na ONU o secretário-geral Dag Hammarskjöld tinha organizado uma sala, com um altar em pedra e uma luz descendo do teto sobre ela, ficou destinada à meditação de todas as crenças.

Infelizmente apenas os sucessivos Papas católicos têm sido convidados para falar à Assembleia Geral da ONU. E assim tem feito (2015), como os seus antecessores, o Papa Francisco. Trata-se não do verbo do poder, mas do poder do verbo. É seguidamente à oração à Nossa Senhora de Fátima, para salvaguardar as agressões à Ucrânia, que torna público o seu diploma de reforma da Cúria, que brevemente estará acessível nas livrarias. Foi sublinhado que ali está previsto um Dicastério, o que significa um Ministério para a doutrina da Fé, orientado possivelmente tendo em conta ter São Francisco ouvido "repara a minha Igreja...". Trata-se do poder da voz destinado, com simplicidade, à fraternidade universal da paz, do vínculo com a Terra. É seguramente um diretório de valor de caridade que inclui a paz global, de todas as etnias, culturas e crenças - o princípio de Assis.

Os poucos chamados santos laicos da política tão acidentada do século XX, política tão responsável por desastres militares sem precedentes como foi a utilização das armas de destruição maciça, foram sobretudo homens notáveis já na última idade: como Gandhi, que pagou a autenticidade com a vida; como Mandela, que deu novas dimensões ativas ao perdão e à reconciliação para uma das sociedades mais conflituosas e discriminatórias da viragem do Milénio.

Quando se recordam os 50 milhões de mortos de guerra de 1939-1945, a destruição das cidades, da economia, da governança, a imagem do fim da história que afligia os sobreviventes europeus, reconhece-se que foram estes homens velhos, de coragem, de visão, e de sabedoria, que implantaram a esperança, formularam o projeto, e demonstraram que o fim das civilizações também é uma desistência.

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