O novo Military Intelligence Services britânico e o que revela sobre a NATO, a segurança europeia e Portugal

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Durante décadas, habituámo-nos à confortável ilusão de que a segurança era um dado adquirido e de que a paz resultava mais da norma internacional do que da capacidade efetiva dos Estados para a proteger. Essa ilusão dissipou-se. O mundo regressou a uma lógica de competição estratégica permanente, em que a fronteira entre paz e conflito é deliberadamente difusa e em que a antecipação passou a valer tanto como a resposta.

A recente decisão do Reino Unido de criar o Military Intelligence Services, uma estrutura unificada de serviços de informações militares, deve ser lida à luz dessa mudança profunda. Não se trata de uma mera reorganização administrativa nem de mais uma reforma técnica das Forças Armadas britânicas. Trata-se de um sinal político claro de que as informações passaram a ocupar um lugar central na governação da segurança e na definição do poder real dos Estados democráticos.

Vivemos num contexto em que Estados adversários recorrem de forma sistemática a operações cibernéticas, interferência no domínio espacial, sabotagem de cadeias logísticas e marítimas, campanhas de desinformação e ações de espionagem dirigidas não apenas às forças armadas, mas também a infraestruturas críticas, empresas estratégicas, centros de investigação e decisores políticos. Estas ações deixaram de ser excecionais. Tornaram-se estruturais. E os seus efeitos fazem-se sentir no preço da energia, na segurança alimentar, na confiança económica e na estabilidade social.

É neste quadro que Londres decidiu integrar, pela primeira vez, todas as suas capacidades de informações militares numa única arquitetura, reunindo unidades da Marinha, do Exército, da Força Aérea, do Comando Espacial e das estruturas conjuntas. Ao fazê-lo, corrige uma fragilidade conhecida em muitas democracias ocidentais: a fragmentação da produção, análise e circulação de informações estratégicas. Num mundo em que a decisão tardia equivale frequentemente a uma decisão errada, sistemas compartimentados não protegem o Estado. Expõem-no.

A dissuasão contemporânea já não se constrói apenas com meios militares ou declarações políticas. Constrói-se com a capacidade de compreender intenções, atribuir responsabilidades, antecipar movimentos e apoiar decisões políticas e militares em tempo útil. Em cenários híbridos, a dissuasão falha menos por ausência de força e mais por falta de clareza. As informações, e a intelligence no sentido estratégico do termo, deixaram de ser uma função de apoio para se tornarem um pilar central da segurança.

Esta reforma britânica tem uma leitura inequívoca no plano euro-atlântico. O Reino Unido continua a ser um dos pilares da NATO no domínio das informações, tanto em termos de capacidades como de cultura estratégica. Uma arquitetura mais integrada reforça a interoperabilidade, melhora a fusão de informação entre aliados e contribui para uma partilha mais eficaz de encargos. Num momento em que a Aliança enfrenta ameaças simultâneas no flanco leste, no espaço euro-atlântico e no domínio cibernético, este tipo de decisão institucional reforça a credibilidade da defesa coletiva.

Há igualmente uma leitura inevitável para a União Europeia. À medida que a UE investe mais em defesa, desenvolve a sua base industrial e discute autonomia estratégica, torna-se evidente que não existe soberania sem consciência situacional. A integração das informações e a proteção contra atividades hostis não podem continuar a ser tratadas como questões exclusivamente nacionais. Sem isso, a autonomia estratégica arrisca-se a ser um conceito político sem tradução operacional.

O reforço da contra-informação, anunciado em paralelo com esta reforma, revela uma realidade incómoda. A atividade de serviços de informações estrangeiros contra o setor da defesa intensificou-se de forma significativa. A competição estratégica deslocou-se para dentro das sociedades abertas. Proteger programas industriais sensíveis, infraestruturas críticas e capacidades militares exige hoje estruturas dedicadas, permanentes e bem integradas com aliados. Não se trata de paranoia securitária, mas de realismo estratégico.

O momento desta decisão não é irrelevante. Surge poucos dias depois de um novo encontro ao mais alto nível no âmbito da parceria AUKUS, entre os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, no qual Londres reafirmou o seu compromisso com a partilha de encargos, o reforço da dissuasão e o desenvolvimento de capacidades reais em estreita coordenação com aliados. Embora centrada no Indo-Pacífico, esta dinâmica ilustra uma coerência estratégica clara. Investir em informações, integração e capacidades tornou-se a base da credibilidade do poder estatal, seja no espaço euro-atlântico, seja noutros teatros de competição.

Para países como Portugal, esta reflexão não é teórica. A nossa segurança assenta, em larga medida, no trabalho rigoroso, discreto e continuado dos serviços de informações, nomeadamente do Serviço de Informações de Segurança, do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e, no plano militar, do Centro de Informações e Segurança Militares. Operando com recursos limitados, mas em estreita cooperação com aliados, estes serviços têm desempenhado um papel essencial na proteção das instituições democráticas, das Forças Armadas, das infraestruturas críticas e dos compromissos internacionais do Estado português. O seu contributo, raramente visível, é um dos pilares silenciosos da estabilidade nacional, da credibilidade externa e da autonomia decisional do Estado.

Importa dizê-lo sem ambiguidades. A centralidade crescente das informações coloca exigências acrescidas às democracias. A eficácia operacional tem de coexistir com controlo democrático, responsabilidade política e respeito pelos direitos fundamentais. A força de um Estado democrático mede-se tanto pela sua capacidade de se defender como pela confiança que consegue preservar entre segurança e liberdade.

A reforma britânica das informações militares e a criação do novo Military Intelligence Services não são sinais de militarização, mas de lucidez estratégica. Reconhecem que a dissuasão começa muito antes do emprego da força, que a antecipação é hoje tão importante como a resposta e que sistemas de informações integrados são uma condição essencial da soberania efetiva.

Ignorar esta realidade não nos torna mais virtuosos. Torna-nos apenas mais vulneráveis.

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