O novo brinquedo da máquina que finge mudar

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Durante décadas, a reforma do Estado tem sido anunciada como prioridade, quase como um ritual político. A cada legislatura surgem novos planos, novas agendas e novas promessas de modernização. Contudo, no essencial pouco muda. Agora, a inteligência artificial aparece como um talismã, tornando-se um novo brinquedo que promete simplificar tudo, agilizar tudo e transformar tudo.

Multiplicam-se conferências, encomendam-se relatórios e os discursos políticos ganham brilho com promessas de machine learningchatbots e algoritmos preditivos. É o novo brinquedo da burocracia e do palco político. Serve para anunciar modernidade, atrair títulos de jornal e inaugurar plataformas vistosas. Ainda assim, será que serve para mudar o que realmente importa? A propósito, onde é que está e para que serve o tão aclamado “Amália”?

Não nos importamos de ser chamados de “velhos do Restelo”, pois já vivemos e ultrapassamos muitas destas tormentas. A nossa experiência com a transformação digital ensinou-nos a ter prudência, pois ao longo dos anos os políticos prometeram-nos um Estado mais ágil e simplificado, mas o que se criou foram portais desarticulados, sistemas que não comunicam entre si e contratos milionários que prenderam organismos públicos a fornecedores indispensáveis.

Em vez de simplificação, acrescentaram-se camadas de complexidade. Em vez de visão sistémica, multiplicaram-se projetos feitos para exibir dirigentes e políticos em palcos internacionais.

É fácil culpar os trabalhadores da Administração Pública, retratando-os como resistentes à mudança. No entanto, essa é apenas uma cortina de fumo. As resistências mais efetivas vivem nos patamares superiores, onde dirigentes protegem o seu espaço, onde interesses privados capturam contratos e influenciam decisões e onde a vaidade política exige sempre lançar a sua própria estratégia, em vez de consolidar o que já existia e funcionava.

Ao mesmo tempo, corporações profissionais, com enorme capacidade de mobilização, bloqueiam qualquer tentativa de mexer em carreiras, sistemas de avaliação ou regimes de trabalho, de forma sistémica, justa e equitativa. E a sociedade, traumatizada pela memória da austeridade, olha para a palavra “reforma” com desconfiança, temendo que signifique perda de direitos mais do que ganhos de eficiência.

Há ainda a resistência financeira, que é a mais subtil e traiçoeira de todas as resistências. Reformar exige investimento inicial, tempo e continuidade. Mas os orçamentos vivem de imediatismos, de défices a controlar e de horizontes eleitorais demasiado curtos para sustentar mudanças profundas. O resultado é um Estado que acumula promessas cheias de buzzwords e adia constantemente a transformação que faria a diferença na vida real de todos nós.

No meio desta teia de resistências ocultas, a inteligência artificial corre o risco de se tornar apenas mais um álibi ou um ornamento discursivo, útil para anúncios e conferências, sem nunca alterar a realidade quotidiana dos cidadãos e das empresas. Porque o essencial não está em comprar algoritmos nem em inaugurar plataformas e sim em simplificar processos, integrar sistemas, libertar recursos para áreas críticas e reforçar a transparência e o escrutínio.

Sem visão de longo prazo, sem coragem para enfrentar interesses instalados, sem humildade para dar continuidade ao que funciona, a IA será apenas mais um brinquedo caro e mais um capítulo na longa história de oportunidades perdidas. O Estado português não precisa de novos fetiches tecnológicos. Precisa de maturidade, visão e consistência. Só então a inteligência artificial deixará de ser apenas um berloque na feira de vaidades e passará a ser uma ferramenta realmente útil.

Até lá, continuará a ser apenas o novo brinquedo da burocracia e do palco político.

Especialista em governação eletrónica

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