O nevoeiro iraniano
A morte de Raisi, no regresso de visita oficial à Província do Azerbaijão Oriental para inaugurar uma barragem, foi uma surpresa, um choque e mais um evento inesperado neste 2024 imprevisível e perigoso. Mas não alterará nada de essencial num Irão fechado, preso num “mantra” de autoritarismo e crescente opressão.
Morreu um dos mais conservadores e duros presidentes iranianos desde a Revolução de 1979, quando o ayatollah Ruhollah Khomeini instaurou uma república islâmica teocrática. Lavrov recordou Raisi como um “amigo verdadeiro e confiável” da Rússia.
Embora eleito nas urnas, Raisi tinha alinhamento quase total com a via do líder supremo, o ayatollah Khamenei, que se apressou - nas horas seguintes à suspeita de que não haveria sobreviventes na queda do helicóptero presidencial em Julfa (600 quilómetros a noroeste de Teerão) - a tentar tranquilizar a população com a ideia de que nada de essencial iria mudar. “O povo do Irão não deve preocupar-se, não haverá interrupção das funções do país”, disse Khamenei numa reunião com as famílias dos membros da Guarda Revolucionária em Teerão.
O presidente é uma peça importante, mas não decisiva na complexa estrutura de poder em Teerão: decorre de eleições, mas está sujeito a relação hierárquica com o Líder Supremo, o Conselho dos Guardiões e a própria Guarda Revolucionária.
A morte do presidente Raisi não vai causar “qualquer perturbação na Administração do Irão”, acrescentou o Governo de Teerão. “O presidente do povo iraniano, trabalhador e incansável, (…) sacrificou a sua vida pela nação”.
A Constituição da República Islâmica prevê que, pela morte ou incapacidade do presidente, suceda o primeiro vice-presidente, donde o senhor que se segue - a acreditarmos nas palavras de Khamenei, será Mohammad Mokhber, de 68 anos, que está no cargo desde 2021 e anteriormente liderou o poderoso conglomerado “Execução da Ordem do Imã Khomeini”. Por estas funções é alvo de sanções pelos Estados Unidos desde 2021. Mokber liderou, como vice-presidente, a parte iraniana nas negociações com a Rússia na cooperação militar entre Moscovo e Teerão que, em outubro de 2022, levou a que o Irão entrasse decisivamente na agressão russa da Ucrânia, ao começar a fornecer os drones Shahed com que a Rússia flagela sistematicamente as cidades ucranianas (bem como mísseis terra-terra).
Para já, Mokhber para a transição
Espera-se continuidade absoluta, mesmo que se marquem eleições nos 50 dias seguintes à transição com Mokhber. Haveria uma alternativa: sinalizar abertura e revelar uma tentativa de abordar as enormes tensões e dificuldades internas da sociedade iraniana, permitindo que nessas eleições surgisse opção real entre uma via dura de continuidade a Raisi e outra mais moderada, corporizada por exemplo por Javad Zarif (o ex-chefe da diplomacia, que negociou o Acordo Nuclear em 2015 com o então secretário de Estado dos EUA, John Kerry).
Mas tudo indica que isso não irá acontecer. O regime dos ayatollahs escolheu o caminho do alinhamento autocrático com Moscovo e Pequim. Escolheu ser o perturbador continental, alimentando os seus proxies anti-Israel e, nalguns casos, também anti-Arábia Saudita (Hamas na Palestina, milícias xiitas pró-iranianas no Iraque e na Síria, houthis no Iémen). O líder supremo não correrá o risco de perder, pelas urnas (mesmo num ato desviado), o controlo dessa rota autoritária.
2024 tem sido um ano particularmente conturbado para o Irão. Primeiro foi um grande atentado nas cerimónias do 4.º aniversário da morte do general Soleimani, provavelmente feito pelo Daesh e que causou mais de 100 mortes; depois o ataque israelita no consulado iraniano em Damasco, que matou sete elementos relevantes das Força Quds, incluindo o brigadeiro-general Mohammad Reza Zahedi, um dos principais comandantes da Força Quds do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica. Mais tarde, um ataque direto inédito do Irão a Israel, que não cumpriu qualquer dos objetivos traçados pelo regime de Teerão.
A linha dura continuará a dominar
No nevoeiro de Julfa morreu também o chefe da diplomacia, Hossein Amir-Abdollahian, que com Raisi corporizava uma dupla que desenvolveu, desde agosto de 2021, uma política externa de progressiva hostilização aos EUA, a Israel e ao Ocidente, contrapondo com o que tinha acontecido, nos oito anos anteriores, com o seu antecessor, Javad Zarif.
Nas últimas quatro décadas, o Irão teve seis presidentes: quatro da linha dura (Khamenei, Rafsanjani, Ahmadinejad e Raisi) e dois de uma ala ligeiramente mais moderada (Khatami e Rohani).
Ali Khamenei é o principal líder pós-morte do ayatollah Khomeini: foi presidente durante toda a década de 80 e ascendeu a líder supremo desde 1989 até hoje. Rafsanjani prosseguiu essa linha nos Anos 90, houve alguma abertura com Khatami nos anos seguintes, mas um enorme recuo com Ahmadinejad, entre 2005 e 2013. A última oportunidade de abertura em Teerão surgiu com Rohani, que promoveu com a Administração Obama o Acordo Nuclear, apostando num alívio das sanções a troco do adiamento do programa nuclear. Ainda conseguiu derrotar Raisi para um segundo mandato em 2017, mas falhou a recuperação económica.
Uma história da Revolução Islâmica Iraniana
Nascido numa família clerical em Mashdad, Raisi era filho da revolução que derrubou o Xá depois de ter viajado para Qom para frequentar um Seminário Xiita aos 15 anos, seguindo os passos do seu pai. Ao ingressar no poder judicial, Raisi, com apenas 25 anos - como muitos outros jovens da sua geração - seria catapultado para um cargo importante, como procurador-adjunto de Teerão.
Foi nessa função que se terá tornado um dos quatro juízes do chamado Comité da Morte, um tribunal secreto criado em 1988 para julgar novamente milhares de prisioneiros, muitos deles membros do Mujahedin-e Khalq. Isso serviu como um trampolim para maiores ambições políticas. Foi também chefe da Organização da Inspeção do Estado. Em 2006, foi eleito para a Assembleia de Peritos, encarregada de nomear e supervisionar o líder supremo e cujos membros são aprovados pelo poderoso Conselho de Guardiões. Apoiou a repressão brutal e os encarceramentos em massa. Foi colocado sob sanções do Tesouro dos EUA em 2019 pelo seu papel na repressão interna.
Na Presidência - e depois de ter sido eleito com a mais baixa participação eleitoral na história da República Islâmica - retrocedeu em tudo o que Rohani tinha tentado avançar. Sob a Presidência de Raisi, o Irão enriqueceu urânio a níveis quase equivalentes a armas e obstruiu as inspeções internacionais.
No final de 2022, uma onda de protestos a nível nacional eclodiu após a morte sob custódia de Mahsa Amini, que tinha sido detida por alegadamente violar o rigoroso código de vestimenta islâmico do Irão para as mulheres.
Em março de 2023, o Irão e a Arábia Saudita, inimigos regionais de longa data, anunciaram um acordo-surpresa que restaurou as relações diplomáticas - algo que, no domingo passado, se terá revelado com as ajudas nas buscas feitas pela Arábia Saudita (no mesmo dia em que o príncipe Mohamed bin Salman celebrava, em Riade, acordos de cooperação estratégica com o Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan).
De Teerão vemos cada vez mais nevoeiro e cada vez menos clareza. Depois de Raisi, quase tudo deverá ficar na mesma.