O inverno do tudo ou nada:A geopolítica do armistício

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O cenário atual do conflito ucraniano apresenta um paradoxo estratégico absoluto: enquanto o gelo endurece as trincheiras de Donbass, o calor diplomático de Miami dita um ritmo de urgência que a linha da frente já não acompanha.

Entramos no “Inverno do Tudo ou Nada”, fase em que a diplomacia triangular entre Washington, Kiev e Moscovo corre mais depressa do que os avanços no terreno. A verdade inescapável é que a guerra caminha para um desfecho, ainda que provisório.

Não existe hoje uma hipótese realista de resolver o assunto a fundo, mas o fim das hostilidades impõe-se pela exaustão material, de ambos os lados, ou pela aceitação de uma paz imperfeita que apenas adia o acerto de contas final.

No terreno, vivemos um congelamento dinâmico. Embora a Rússia controle menos de 20% do território ucraniano, a sua máquina de guerra dá sinais acentuados de fadiga, apesar dos discursos de Putin, atenuada pela clara vassalagem económica a Pequim, que fornece bens de uso duplo e absorve petróleo a preços de desconto. As perdas russas, que ultrapassam o milhão entre mortos e feridos graves, limitam a capacidade de ofensivas sustentadas. A recente recuperação ucraniana da quase totalidade de Kupiansk, bem como a resistência tenaz em Pokrovsk, foi um golpe psicológico que demonstrou a fragilidade das linhas russas quando esticadas. Contudo, o atual forcing de Vladimir Putin revela um objetivo claro: a totalidade administrativa do Donbass. Putin poderá aceitar uma pausa hoje para garantir que a Ucrânia saia deste conflito numa posição de fragilidade estrutural, permitindo-lhe, tal como fez entre a Crimeia em 2014 e a invasão de 2022, terminar o que começou.

Entretanto, tentará enfraquecer a União Europeia através de 'cavalos de Tróia' ou partidos radicais apoiados por Moscovo, contando com o apoio tácito de Washington.

Aqui reside o perigo central: o “jogo curto” americano, movido pela pressa de Trump em declarar uma vitória diplomática rápida, parece beneficiar o “jogo longo” russo.

Ao forçar um acordo antes que a Rússia colapse sob o peso da dependência da China, Washington corre o risco de oferecer a Putin o oxigénio necessário para se rearmar. Esse jogo longo não nasce de uma paranoia face à NATO, mas da ambição de restaurar uma esfera de influência exclusiva no espaço pós-soviético.

No entanto, o Plano Miami traz uma contrapartida que pode inverter esta lógica: os 15 anos de proteção americana previstos nas garantias de segurança. Este período oferece algo que a Ucrânia e a Europa nunca tiveram: tempo.

Estes 15 anos são a janela crítica para a reconstrução.

É necessário distinguir o “escudo” do “corpo”: enquanto a proteção militar imediata é americana, a sobrevivência real terá de ser estritamente europeia. A Europa tem o dever imperativo de crescer militarmente para deixar de ser um protetorado, enquanto integra a Ucrânia nas suas instituições.

Nesse intervalo, Kiev poderá aceitar concessões dolorosas, como zonas desmilitarizadas ou limitações temporárias à soberania em certas áreas.

O prognóstico para 2026 aponta para um armistício similar ao coreano, uma paz armada e precária. Se esse tempo for usado para transformar a Ucrânia num bastião tecnológico e militar ancorado na autonomia estratégica da UE, o que Putin planeia como uma pausa tornar-se-á a fundação de uma resistência inquebrável.

O inverno decidirá se este será o intervalo para uma nova tragédia ou o início de uma Europa que finalmente aprendeu a defender a sua liberdade.

Analista de Estratégia, Segurança e Defesa

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