Apesar da enorme agitação diplomática que tem ocorrido nos dias mais recentes, continuamos muito longe da paz na Ucrânia. O plano elaborado pelos russos e assinado por Donald Trump, dando assim a impressão de que era uma iniciativa da Casa Branca, desfaleceu ao fim de dois ou três dias. As posições de Zelensky e dos aliados europeus esvaziaram-no. Disseram em uníssono, sem ambiguidades, que era um Diktat inaceitável, uma espécie de ultimato vindo de Moscovo. E ficou claro que o enviado de Trump, o promotor imobiliário Steve Witkoff, percebe tanto de geopolítica como o Cristiano Ronaldo ou é candidato ao Guinness como o agente russo mais descarado na história recente dos EUA. Coisa rara, a firmeza europeia revelou-se exemplar. A de Zelensky foi a que seria de esperar, embora o anúncio inicial da proposta russo-americana tenha sido um fortíssimo murro no estômago ao dirigente ucraniano. Quem viu as imagens de Zelensky nesse momento pôde notar que ficou profundamente chocado. Mas não perdeu o equilíbrio, que era isso que o Kremlin pretendia. Respondeu diplomaticamente e três dias depois já havia outro plano, elaborado em Genebra, em conjunto com delegações europeias e a equipa de Marco Rubio. Este último marcou pontos, no interior do círculo de Trump. Conseguirá manter essa ascendência? Não vai ser fácil, mas não é impossível. Para muitos no movimento MAGA, Rubio é um rival silencioso de Trump e, sobretudo a prazo, do vice-presidente, J.D. Vance. É evidente que o grupo dirigente americano está a ficar fraturado. E não apenas por causa das divergências no tratamento das relações com a Rússia, mas igualmente por razões internas: o caso Epstein, o custo de vida, a perseguição aos imigrantes, os favores prestados aos multimilionários mais excêntricos, etc. No caso da Rússia, creio ser relevante lembrar que a doutrina militar norte-americana tem assentado, ao longo de décadas, na categorização desse país como um Estado que constitui para os EUA uma grave ameaça. Assim, muitas das altas patentes militares norte-americanas olham com enorme surpresa para o relacionamento que Trump estabeleceu com Putin. Aqui há gato escondido com rabo de fora. Muitos pensarão que esse relacionamento tem mais que ver com a chantagem ad hominem vinda de Moscovo, do que com um novo tipo de diplomacia. Entretanto, a diplomacia relacionada com a brutal agressão contra a Ucrânia continuou o seu curso em Abu Dhabi. Temos para já um novo projeto, mais apropriado. É fundamentalmente inspirado pelo realismo ucraniano e tem o apoio da parte europeia. Não será certamente aceite por Vladimir Putin, mas coloca-o na defensiva perante o seu par americano. Trump quer o fim da guerra a qualquer custo – na realidade não se trata de uma guerra, mas sim de uma agressão bárbara da Federação Russa contra a Ucrânia –, desde que isso acrescente um argumento à sua candidatura ao Nobel da Paz. Essa é a ambição, o seu ego acima de tudo. Estamos, todavia, numa fase arriscada para a soberania da Ucrânia e para a segurança da Europa. Putin acredita em duas ilusões fundamentais: que vai esfrangalhar a Ucrânia e que conseguirá abrir um fosso e afastar os EUA da defesa da Europa. Ou seja, que o apoio norte-americano à NATO tem os dias contados. A NATO será, quando muito, na visão de Putin, uma coligação meramente simbólica, que só durará enquanto os europeus tiverem meios financeiros para comprar armamento e outros bens e serviços americanos. A paz constrói-se na base da confiança mútua. Sem confiança, teremos quando muito uma pausa temporária das hostilidades. Os alicerces dessa confiança em relação à administração Trump foram seriamente abalados com o endosso de Washington ao incrível plano russo. É fundamental reconstruir a confiança entre os europeus e os americanos. Já em relação à Rússia de Putin não há espaço para qualquer tipo de confiança. Putin sonha com uma Europa vassala, presa no redil da sua esfera de influência geopolítica. Precisa dessa influência por narcisismo de inspiração czarista, por razões económicas e por motivos estratégicos: assim pode reivindicar a sua pertença ao clube dos grandes, ao lado da China e dos EUA. Por isso, quer desmembrar a Aliança Atlântica e fazer implodir a União Europeia. A confiança assenta em valores partilhados. No meu entender, os mais importantes são os que constam da Carta das Nações Unidas. As grandes potências não respeitam, nos tempos atuais, os princípios básicos da Carta: a dignidade das pessoas, os direitos humanos, a tolerância, a independência e a soberania de cada Estado, grande ou pequeno, e a solidariedade entre os povos. A Europa democrática, por seu turno, procura manter-se neste quadro de valores. Apenas uma minoria de movimentos e partidos políticos demonstram por cá desprezo por estas linhas vermelhas. A maioria reconhece a importância da democracia e do respeito pela lei internacional. Vê, por isso, Putin como uma ameaça muito séria. Razão pela qual aposta na defesa da nossa parte do continente, a começar pela defesa da Ucrânia e pela simetria das forças, que é algo diferente da paz, mas serve a paz. E compreende agora que a relação com a América que Trump representa é perigosamente instável. Deve ser reequilibrada, urgentemente. Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU