O dilema da Índia

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A aproximação a todos os níveis entre os Estados Unidos e a Índia, evidente desde o início do século, parece agora ameaçada pela decisão de Donald Trump de impor tarifas de 50% aos produtos indianos. Narendra Modi sofreu uma retaliação por recusar ceder às pressões americanas para cortar com as importações de petróleo russo a preço de amigo, mas o primeiro-ministro indiano não tinha outra solução que não fosse ignorar a exigência do presidente americano. Uma resposta negativa que foi motivada tanto por realismo económico, como pela necessidade de a Índia manter uma política externa soberana, não suscetível a chantagens, mesmo que venham do país mais poderoso do mundo. Mas a dúvida é se estamos perante uma crise momentânea, que indianos e americanos tenderão a ultrapassar, ou se, perante a desilusão causada por Trump, Modi procurará reforçar velhas amizades e encontrar novas. No que diz respeito às velhas amizades, a relação com a Rússia continuará boa, até por esta dependência energética da economia indiana dos preços russos, mas o sucesso de uma nova amizade com a China já surge como mais improvável, tanto é aquilo que afasta os dois gigantes demográficos do mundo.

Modi vai estar com Xi Jinping em Tianjin no fim-de-semana, durante a cimeira da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) de que o presidente chinês é anfitrião, e por um encontro entre os dois não acontecer há vários anos há muita expectativa do que poderá resultar, sobretudo no contexto de crise nas relações indo-americanas. Num cenário simplista, dois países vizinhos, um com a segunda maior economia do mundo e o outro com a quarta, ambos interessados em contrariar o domínio do Ocidente sobre a ordem internacional, teriam todo o interesse numa aproximação. Mas as tensões históricas, os problemas fronteiriços persistentes e diferente perspectiva em relação ao Paquistão (também parte da OCX, tal como a Rússia, a Bielorrússia, quatro repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central e o Irão) chegam para limitar as hipóteses de amizade, mesmo que de conveniência.

Não esquecer que a Índia, além de ter no Paquistão um tradicional inimigo que é por seu lado tradicional amigo da China, suspeita tanto das ambições de poder chinesas que mantém uma aliança informal destinada a contrariá-las com os Estados Unidos, o Japão e a Austrália, o chamado Quad. E também no plano económico, mesmo que seja benéfico para indianos e chineses um reforço da relação, não deixa de ser claro que há também competição, basta pensar como quando Trump estava a ameaçar a China com a sua guerra das tarifas, a Índia até surgia como uma alternativa possível à fábrica do mundo, por exemplo em produtos como os iPhone.

Modi e Xi são dois líderes experientes, já que ambos governam há mais de uma década. E certamente habituaram-se a planear como ultrapassar momentos complicados, no caso de Modi, ou como tirar proveito de momentos complicados dos outros, caso de Xi perante esta súbita inversão da aproximação geopolítica entre Nova Deli e Washington. Mas sobretudo Modi terá que ponderar se vale mesmo a pena, por muito dolorosa pessoal e politicamente que seja a atitude de Trump, acentuar a tensão com os Estados Unidos aproximando-se de uma China que, ao ambicionar substituir os Estados Unidos como superpotência, se vê cada vez mais como o lado forte de qualquer relação. Ou seja, se uma estabilização das relações com a China é algo certamente importante para a Índia (e para a China também, diga-se), fazer isso de modo a inviabilizar uma reconciliação com os Estados Unidos de Trump ou do pós-Trump talvez não seja a melhor estratégia a seguir.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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