O dia em que Edgar Morin me pediu para ser seu amigo

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A vida não vem com manual de instruções.

Fazemos o nosso caminho, mas há momentos decisivos que nos ajudam a definir. Perdas, vitórias, ideias, decisões, obstáculos, filmes, canções, livros e amigos que nos completam, questionam e amparam.

Tenho a sorte de ser amigo de um homem que já não é um homem: Edgar Morin é, isso sim, uma parte da civilização que agora parece estar em causa. Na nossa última conversa, em que o fiz provar queijo de Serpa e o Vinho da Madeira, recordo a forma como, esperançoso e otimista, falou do ser humano. E enfatizou-me se soubermos compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações sociais. Morin nunca desistiu de nós, nunca nos retirou do centro de uma obra que continua na vanguarda do pensamento ocidental.

Quando o conheci perguntei-lhe como o podia tratar. Olhou para mim, perplexo. Edgar, somente Edgar e deu-me o braço. Falámos do dinheiro, do poder, da banca feita para multiplicar o capital, mas que precisa de estar ao serviço das pessoas. São a única coisa que verdadeiramente importa. Penso nisso tantas vezes, é uma motivação e um privilégio poder sedimentar essa esperança no futuro com a sabedoria próxima do mais importante filósofo vivo.

Edgar não será imortal, mas já é eterno. Impressionante a obra que deixa, os livros que escreveu. Mais fulgurante ainda a força do seu silêncio, o olhar e o toque físico seletivo, a empatia. Acredita no amor e, quando o diz, todos também acreditam. Prefere a metamorfose à revolução, é um príncipe.

Está carregado de vida, não quer morrer. E por isso insiste em escrever, pensar, comer queijo, beber vinho, namorar.

Tem 104 anos, o meu amigo Edgar.

Um resistente forjado na “resistance”, que após os incidentes na Hungria rompeu com o partido comunista e na Itália numa entrevista em off criticou a qualidade de Sartre como filósofo e político, preferindo as qualidades enquanto escritor. Sartre telefonou-lhe para o hotel furibundo e fez saber que a partir daquele momento estavam oficialmente de relações cortadas.

Porque tenho de morrer, perguntou-me retoricamente. Porque temos de morrer se a nossa cabeça nos grita por mais ideias e novos sonhos, e afetos e emoções? Respondi-lhe que não morrerá, que é uma biblioteca que explica o mundo, o cronista do século.

Porque falo de Edgar Morin? Por não me querer afastar do cooperativismo.

Afinal, é o filósofo do humano, o pensador preferido de Francisco, um teólogo sem Deus ou um agnóstico de muita fé. Um cooperativista de corpo e espírito, um cidadão do mundo que deseja deixar uma parte do seu espólio a Portugal.

Quero ver se o visito em Paris, se o fizer darei notícias nesta nossa conversa semanal. Levo-lhe vinho e queijo português ou então espero a sua visita para voltarmos aos fados e andar de elétrico. Comeremos sardinhas e cheiraremos o Tejo. Com um bocadinho de sorte voltar-me-á a dizer: “Manuel, estas batatas são maravilhosas, sabes souberam-me a batatas e hoje respirei por tua causa a Lisboa dos anos sessenta. Não tenho cá a Helena Vaz da Silva e o Alberto, agora tenho-te a ti como meu amigo. Pode ser?”.

Tenho muitas saudades de Edgar Morin, e o que me impressiona não é a sua idade física com que marca o século. Mas o seu olhar, a palavra pensada e aquele pedido “continua a ler-me e falar das coisas que falo porque tu na tua essência, és também um “moorariano”.

Presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras

manuel.guerreiro@ccamtv.pt

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