O deserto

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Em 1913, quando os conservadores estavam sensivelmente a meio da sua mais longa travessia no deserto desde o século XVIII, Keith Feiling, historiador e professor na Universidade de Oxford, publicou um livro chamado Toryism. Na obra, o autor exprimia os principais dilemas e incapacidades do centro-direita britânico recorrendo a um diálogo permanente e mordaz entre quatro conservadores-tipo de então, isto é, com perfis análogos aos das principais “correntes” internas.

O primeiro era um tory típico, uma espécie de reencarnação de Salisbury. O segundo tratava-se de um conservador por conveniência pessoal (“um homem de posses e de lazer”). O terceiro, um carreirista político, deputado ex-liberal (convertido por oportunismo). E um último, mais idealista até, que tinha na Imperial Preference a sua imagem de marca.

Comungavam, contudo, da visão de que o país era pequeno e o império enorme, o mundo se apresentava progressivamente mais incerto, as forças militares eram exíguas face às de estados emergentes, os impostos subsistiam elevadíssimos e as classes contribuintes estavam exauridas. Temiam que, perante mudanças tão drásticas como as do início do século passado, o partido perdesse o seu propósito. Mais do que do afastamento do poder – que se prolongou por 17 anos -, os conservadores de Feiling receavam a erosão da matriz tory. A perda de rumo. Se não reformado e conforme a novas realidades, vislumbravam um risco existencial para o seu ideário comum.

Ora, sendo inequívoco que na generalidade das democracias ocidentais é a esquerda que enfrenta uma crise mais profunda – ao mesmo tempo que até os mais desfavorecidos já só dispensam bocejos à conversa da luta de classes, as grupetas urbanas, elitistas e folclóricas abdicaram de falar de pobreza e exclusão –, as diferentes direitas não vivem tempos auspiciosos.

Veja-se o caso português. Inebriado por contar hoje com um dos seus na Presidência da República, por ter vencido duas eleições legislativas num só ano, por liderar os governos regionais dos Açores e da Madeira, por chefiar as cinco autarquias mais populosas e, em face do resultado das autárquicas do mês passado, ter recuperado a presidência da Associação Nacional de Municípios Portugueses, o PSD revela-se incapaz de reformar o país ou de dar sequer um mínimo sinal de que essa seja a sua intenção.

Prefere, ao invés, celebrar os crescimentos tímidos que lamentou com António Costa, conformar-se com esbulhos fiscais que em pouco ou nada deslustram as de António Costa e Mário Centeno – o mesmo que Joaquim Miranda Sarmento já admite apoiar numa corrida a ‘vice’ do Banco Central Europeu –, distribuir migalhas por pensionistas na antecâmara de eleições como fazia António Costa e alimentar a desigualdade entre os sectores público e privado, expediente em que era pródigo… António Costa.

À falta de outra mundividência – e de partidos disponíveis para serem tão leais quanto exigentes ou tão exigentes quanto leais –, o centro-direita português tem sido arrastado para uma morgue doutrinária, enredando-se e enredando-nos a discutir burcas, cartazes à beira da estrada, instrumentos de cozinha e outras frivolidades que só interessam aos extremistas sem soluções e aos media dependentes de enredos low cost.

A reforma dos sistemas de saúde e de educação podem esperar. O poder judicial pode continuar em roda-livre e com agendas imperscrutáveis. Os transportes podem permanecer ineficientes, desde que públicos, como os socialistas de esquerda e de direita os pretendem. E os nossos filhos e netos que se conformem com salários miseráveis ou com a emigração – e, já agora, com pensões correspondentes a 30% ou 35% dos seus últimos salários. Tal como há um século, é a assunção de uma identidade e coragem que se exige ao centro-direita. Por mais que o sucesso circunstancial adie o inevitável, não há entidade que prospere num deserto de ideias.

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