O contributo dos rouxinóis para a vida eterna

Vítor Moita Cordeiro

Nasceu em Lisboa em 1978. Contador de histórias, apaixonado por música antiga, etnografia e cinema esquecido. É na política prática, aquela que move o mundo, que encontra os desafios que partilha no jornal. Trabalha no Diário de Notícias desde 22 de agosto de 2023.

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Se não houver um efeito pedagógico do canto dos pássaros na produção musical, no mínimo haverá uma inspiração latente, por mimetismo, como se só copiássemos a natureza em vez de criarmos algo espontaneamente. Só com esta ideia como premissa é que consigo tentar compreender o que passou pela cabeça de Jean-Baptiste Drouard de Bousset (1662-1725) quando compôs a música Pourquoy Doux Rossignol (Porquê Doce Rouxinol).

Não sei se alguma vez consegui imaginar um rouxinol em cada uma das trezentas vezes que já ouvi esta música através da miríade de interpretações que já fizeram dela, principalmente em traverso barroco, mas consigo ouvir a melancolia de alguém que desabafa com um pássaro o seu desgosto amoroso. Na verdade, a criatura sofredora, que protagoniza esta música, pede ao rouxinol que a acorde, num processo ambíguo de consciência e de sonho. E lá fica o pássaro transformado num despertador ou num qualquer objeto que tem como objetivo aliviar a dor do humano que sofre.

Parece que, porém, a natureza é mais alheia à humanidade do que o inverso, principalmente no que diz respeito à arte.

Antecipo já que este texto é uma espécie de pedido mórbido, muito pessoal, sobre como gostaria de ser eternizado numa amálgama de natureza e música. Mas já lá vamos.

Vamos continuar com as aves canoras e com as flautas. Há cerca de 20 anos, por intermédio das incríveis Joana Bagulho e Joana Amorim, respetivamente cravista e flautista (de bisel e traverso barroco), fui confrontado com uma música do renascimento inglês que, na versão contemporânea, assumia uma forma dançável. A Bonny Sweet Robin aparecia assim como uma mazurca, lânguida, virtuosa, muito calma, demorada, que suspendia cada passo. No fundo, como toda a gente quer que uma mazurca seja, por oposição ao ritmo original, com aquele quase saltinho inacabado característico. Também não sei se dançaria ao som do hino nacional da Polónia, que é uma mazurca (já o fiz, mas não vou revelar a ninguém).

Paira uma incógnita sobre quem compôs a versão original da Bonny Sweet Robin. A música surge numa compilação de música para alaúde intitulada William Ballet’s Lute Book, por volta de 1600, mas também mereceu atenção por parte do compositor John Dowland (1563-1626), que inspira as interpretações mais frequentes.

Foto: Direitos reservados

Para não fugir do tema, gostaria de alertar para a presença de uma possível ave também nesta música: o robin, que em português seria, com muito menos poesia, mas com muito mais tonalidades, um pintarroxo ou pisco-de-peito-ruivo. Pior ainda é o nome científico deste minúsculo descendente dos dinossauros: Erithacus rubecula.

Fugindo da ornitologia, quero assumir que estas duas músicas, a do Drouard de Bousset e a outra, são tão bonitas que já me levaram a pensamentos extremos, como passar uma eternidade a ouvi-las consecutivamente, alternando uma com a outra. E levou-me também a traçar um plano, que dificilmente poderei concretizar, porque não depende de mim, para alcançar uma forma de vida eterna. Quando morrer, espero (sem esperança de que aconteça, garanto, para não obrigar ninguém a cumprir os meus desejos ousados) ser sepultado de forma natural. Pode ser sob a forma de cinzas enterradas num campo qualquer. Nesse local, gostaria que fosse plantada uma oliveira. São conhecidas pela longevidade, mas também têm a madeira mediterrânica mais incrível de todas, com padrões listados, ondulantes, entre o castanho muito escuro e um dourado pálido. A ideia seria que a árvore, à medida que crescesse, fosse assimilando a minha matéria orgânica, acabando por dar origem a uma fusão vegetal entre a minha existência e a dela. Mais tarde, quando os ramos da oliveira fossem suficientemente fortes, espessos e direitos, poderiam ser cortados e dados a um construtor de flautas, que daria vida aos meus ramos (aos da árvore) através de música, de preferência antiga, tanto quanto possível.

No meio disto tudo, que os rouxinóis e os piscos-de-peito-ruivo e todos os pássaros do mundo fossem lá cantar, pousados nos ramos, enquanto fechavam um ciclo incessante de natureza e música que só existe nos ouvidos humanos. Os pássaros não sabem o que é música, apesar de ser a única voz que têm. Aí, por não poder ser mais nada, também eu seria música.

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