O cinema que vive através do teatro

Luís Miguel Cintra e Manoel de Oliveira colaboraram em vinte e quatro filmes, numa viagem recheada de muitas memórias.
O cinema que vive através do teatro
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Eis um belo título: Pequeno Teatro do Mundo. Assim se designa uma recentíssima edição com chancela da Fundação de Serralves, livro de acompanhamento da exposição homónima dedicada a Luís Miguel Cintra (n. 1949), patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO) até 4 de janeiro de 2026. Não é exatamente um catálogo, antes um inventário de memórias e testemunhos em torno de um homem que, muito justamente, o texto de apresentação da exposição [serralves.pt] define como “uma figura maior do teatro em Portugal e um dos rostos mais marcantes do cinema português dos últimos sessenta anos”.

Aí descobrimos as fotografias encomendadas a André Cepeda, dando a ver a miríade de objetos (da arte sacra à quinquilharia) da casa de Luís Miguel Cintra (agora transfigurados em materiais de exposição). Aí encontramos também um texto de Luís Miguel Cintra que talvez possamos definir como um esboço autobiográfico organizado a partir das suas presenças na obra de Manoel de Oliveira, ensaios inéditos de Paulo Raposo e Regina Guimarães, e ainda uma longa e fascinante conversa com António Preto, diretor da CCMO, cujo título envolve todo um programa intelectual e afetivo: Manoel de Oliveira segundo Luís Miguel Cintra.

Não será necessário sublinhar que a obra de Manoel de Oliveira “adotou” Luís Miguel Cintra como um dos seus símbolos mais cristalinos, de tal modo as suas interpretações suscitam e, mais do que isso, ilustram toda uma conceção da arte de estar em frente a uma câmara de filmar - na certeza de que, para Oliveira, “estar” é já uma forma de representar, talvez a mais pura e, por isso mesmo, mais enigmática.

Na introdução ao livro, António Preto confronta-nos com o misto de singeleza e complexidade de tal viagem (a palavra “carreira” é escassa para falar de tudo isto) quando nos apresenta um cuidadoso, e muito pedagógico, inventário dos vinte e quatro filmes de Oliveira em que Luís Miguel Cintra participou - da “voz sem corpo” de Lisboa Cultural (1983), “que nos dá a ouvir” o sermão da Epifania do Padre António Vieira até O Velho do Restelo (2014), interpretando “a figura de Camões à conversa com os seus pares num banco de jardim à porta da casa do realizador”.

Dir-se-ia que da pureza metafísica (apenas a voz) até à corporização do poeta (Camões) para sempre entregue à história e à mitologia, à memória e ao esquecimento, o ator é esse nómada da palavra e do ecrã - ou da imagem e do som, se quisermos apelar às lições de Jean-Luc Godard (e porque não?).

Talvez se possa dizer tudo isso de modo mais frio e desencantado, mas não necessariamente fúnebre: o ator é, ou pode ser, aquele que desafia o silêncio da morte, fixando-se (e fixando-nos) numa imagem, numa coleção de imagens capaz de discutir o trabalho metódico da morte. Enfim, de forma mais básica, com o seu quê de comédia, o ator é aquele que, de uma maneira ou de outra, sobrevive à sua personagem. Nota a ter em conta: o texto de Luís Miguel Cintra começa por citar uma pergunta que Oliveira lhe fez, já depois de ter completado 100 anos: “O Luís já viu alguém morrer?”

O que, enfim, nos remete para uma dimensão obviamente teatral: o cinema, arte de muitos fingimentos, existe através de uma teatralidade visceral. Será preciso lembrar que o risco de lidar com essa teatralidade é o motor formal e simbólico de todo o cinema de Manoel de Oliveira? Ele o disse, num diálogo registado no dia 31 de agosto de 1981, na Cinemateca Portuguesa, através de uma célebre fórmula que, a meu ver, sendo teórica, não exclui o sabor de uma elaborada ironia: “O cinema é o registo audiovisual do teatro”.

Jornalista

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