O Chega à conquista da esquerda?

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A evolução das posições do Chega sobre questões laborais entre 2020 e 2025 merece atenção, sobretudo pelo que poderá significar, caso represente um caminho consistente e não apenas uma manobra tática.

Mudanças de posição não são, por si só, surpreendentes. Em 2020, o Chega ainda estava a ganhar forma e era ideologicamente heterogéneo. Ventura já era Ventura, mas o partido não estava tão centrado na sua figura como hoje. As “purgas” internas que afastaram dissidentes ainda não tinham ocorrido. E, na verdade, não foi o único partido da democracia portuguesa a dar ziguezagues. O que torna este caso relevante é o que pode anunciar: a aproximação do Chega ao modelo de outros partidos populistas de direita na Europa, que conquistaram parte significativa do eleitorado tradicional da esquerda através de um discurso iliberal, protecionista e antiglobalização - e altamente apelativo para quem ficou à margem dos benefícios económicos das últimas décadas e não se sente representado pela esquerda.

O exemplo francês é ilustrativo. Uma fatia importante do eleitorado que, até aos anos 90, votava no Partido Comunista Francês (PCF) migrou gradualmente para a Frente Nacional. Hoje, o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen tem uma base sólida entre o operariado “branco”, que se sente abandonado pela esquerda. Como recordou o historiador Yvan Gastaut, numa entrevista à RFI, em 2017, Marine Le Pen “recuperou o eleitorado do PCF”. A “preferência nacional” - um slogan que o próprio PCF usou no passado - tornou-se especialmente atrativa para os trabalhadores mais pobres. E é precisamente este modelo que o Chega parece querer replicar: apresentar-se como a “direita que defende os trabalhadores”, ocupando um espaço político que a esquerda deixou vago e que a direita tradicional nunca reivindicou. A conquista de uma base eleitoral sólida, que o Chega ainda não tem, passa inevitavelmente por aqui. Sem essa base, dificilmente se afirmará como um grande partido nacional, no médio e longo prazo.

Os resultados do Chega no Alentejo e nas periferias de Lisboa e Porto, antigos bastiões comunistas, apontam nessa direção. Mas, tal como noutros países, o apelo do populismo de direita não se limita às classes operárias. Uma parte da classe média - composta por funcionários públicos e trabalhadores do setor privado que perderam poder de compra nos últimos 15 ou 20 anos - também se sente atraída por este discurso. A chamada “maioria sociológica de esquerda”, tantas vezes evocada, corresponde na verdade a uma preferência maioritária por um modelo que combine liberdade económica com proteção social. Mais do que sociais-democratas ou socialistas democráticos, os portugueses têm votado, ao longo de décadas, como eleitores de matriz democrata-cristã, no sentido original do termo.

Durante meio século, essa maioria encontrou representação no PS e no PSD, que consolidaram em Portugal uma economia social de mercado ao estilo europeu. Aí reside o centro de gravidade da política portuguesa: a maioria dos eleitores rejeita tanto uma economia totalmente liberalizada e desregulada como os modelos radicais da extrema-esquerda. Com este contexto favorável, se nas últimas décadas o PS e o PSD tivessem conseguido promover mais crescimento económico, melhorar as condições de vida, combater a corrupção e controlar a incompetência e a avidez de alguns dos seus quadros, o panorama seria outro. Partidos como o Chega ou a IL dificilmente teriam emergido e florescido. O seu crescimento rápido deveu-se aos erros que os dois grandes partidos do nosso rotativismo cometeram nas últimas décadas, perdendo a confiança de muitos milhares de portugueses.

A diferença entre o Chega e a IL, neste domínio, é que, no plano económico, o primeiro tem maior facilidade em captar votos entre eleitores de esquerda e entre a classe média desiludida com o “centrão”. Já a IL, para crescer nesse espaço, terá primeiro de convencer os eleitores dos méritos do liberalismo económico, uma tarefa difícil num país onde essa tradição política chegou tarde e nunca ganhou raízes profundas.

Entretanto, o contexto político teve um importante desenvolvimento esta quarta-feira. Com o arquivamento do caso Spinumviva, desapareceu a grande nuvem negra que pairava sobre o Governo da AD. O Executivo de Luís Montenegro tem agora condições reforçadas de estabilidade, tornando menos plausível um cenário que foi equacionado por muitos nos últimos meses, a respeito da eventual emergência de um novo líder do PSD que estivesse disposto a abrir a porta a um entendimento com Ventura. Este fator altera o tabuleiro político: se o Chega quiser crescer, terá de o fazer por via própria, fazendo oposição, conquistando eleitorado e consolidando uma base social que ainda não tem - e não esperando que o PSD lhe abra caminho para o poder. É neste contexto que ocorre esta aparente viragem do Chega. Veremos se este rumo é para manter.

Diretor do Diário de Notícias

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