O cadáver de Franco numa Chaimite

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A 20 de novembro de 1975, Carlos Arias Navarro entrou em casa dos espanhóis sem anúncio prévio pela antena da televisão pública. Com o rosto contorcido por uma dor tão profunda quanto patética, o então presidente de governo pronunciou uma frase que ficou na memória colectiva do país vizinho: “Españoles, Franco ha muerto”.

A notícia aliviou a imensa maioria da população, mas humilhou a oposição revolucionária. A placidez do “facto biológico” – eufemismo balsâmico inventado pelo regime para se referir à morte do Caudilho – provou o fracasso de quem lutava pela derrocada do poder vigente. O fracasso pesou ainda mais por comparação com Portugal, de onde brotavam imagens de épica revolucionária.

Mas o fim da ditadura não foi o início da democracia. Aliás, à época, não era de todo evidente que a morte de Francisco Franco permitisse o nascimento de um regime liberal e pluralista. A democracia exigiu acordos notáveis, riscos audazes, muitos avanços e uns poucos recuos.

Exigiu vontade e compromisso das oposições de esquerda e de direita, bem como sentido de Estado (e de História) por parte da ala tecnocrata do Franquismo. Foi uma transição democrática estável e ordenada, embora severamente ameaçada por intentonas militares e organizações terroristas.

Surpreende, portanto, que o governo de Pedro Sánchez tenha escolhido a morte do ditador como efeméride a celebrar. Desde logo porque a Lei para a Reforma Política em 1976, as primeiras eleições legislativas livres em 1977, o referendo à Constituição em 1978 ou até a derrota do golpismo militar ultramontano em 1981 são alternativas com maior relevância histórica para comemorar a liberdade e a reconciliação nacional.

Porém, Sánchez preferiu dedicar 2025 – não apenas um dia, mas um ano inteiro de cerimónias, eventos, mesas-redondas e demais iniciativas – a Franco.

Estes debates políticos sobre o passado discutem, na verdade, o presente. Dizem mais sobre o que somos do que sobre o que fomos. Em Portugal é igual. Há, no entanto, uma enorme diferença ibérica: enquanto por cá procuramos a data da democracia – 25 de Abril, 25 de Novembro, ambas as datas –, em Espanha o governo agarrou-se ao rigor mortis do ditador.

Talvez a esquerda revolucionária queira ressuscitar Franco para matá-lo, superando assim a humilhação sofrida em 1975. A outra hipótese, menos freudiana e melhor suportada em factos, é mais simples: ao recuperar Franco, Sánchez e a esquerda que o apoia no parlamento procuram reavivar o país que a guerra civil e a ditadura partiram ao meio. Os bons, representados pelo governo, contra os maus, concentrados na oposição.

Esta divisão moral oferece as justificações necessárias para menorizar a torrente de corrupção, peculato e tráfico de influências que aflige o governo, o PSOE e a família de Sánchez. Mais, autoriza o Executivo a atropelar normas e leis, e a evitar eleições antecipadas, já que a alternativa será o regresso dos maus ao poder. Em resumo, metade do país é perigoso e ilegítimo. E assim se destrói uma democracia.

Ao escolher o “facto biológico” como data a celebrar, o governo espanhol mete o cadáver de Franco dentro de uma Chaimite, de cravo vermelho na mão. É uma imagem aterradora. Um completo absurdo histórico, ainda mais patético do que o rosto de Arias Navarro a 20 de novembro de 1975. O pior é tratar-se de um expediente para acabar com o espírito de concórdia que funda a democracia em Espanha.

Politólogo. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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