Nuno Júdice. A fonte da vida: a poesia
Há dois anos, em Março de 2022, quando Gastão Cruz (1941-2022) nos deixou, tive a oportunidade de dizer e de escrever que com o autor de A Moeda do Tempo (2006) acabava um tempo literário. Na verdade, porém, o tempo literário vindo da década de 1960 e o que ela representou em termos de experimentação, ruptura e simultâneo diálogo com as vanguardas de início do século XX (simbolismo e modernismo), não tinha cessado, pois Nuno Júdice (1949-2024) e Manuel Gusmão (1945-2023) ainda estavam entre nós. Em poucos meses, porém, as despedidas destes dois autores confirmam o óbvio: somente agora um determinado tempo poético fechou. Corresponde esse tempo a uma época em que escrever poesia e publicá-la era assumir um posicionamento não só estético, mas ético. Digo-o sem mistificações e mitificações e porque os factos da política, da cultura e das mentalidades (e da própria história da edição de poesia em Portugal) o confirmam.
Nuno Júdice (1949-2024) não será o último representante da grande família de poetas que publicam no período pós-Pessoa e que fizeram do século passado esse século de ouro de que António Franco Alexandre (1944) é hoje a voz sobrevivente. Século de ouro, de facto, pois que a reinvenção da imaginação verbal - e mesmo a invenção dum certo imaginário português - dialecticamente se construiu, com os nossos maiores poetas pós-Pessoa, em tensão e contradição com o magistério pessoano e outras influências: a de Sá-Carneiro (1890-1916), a de Camilo Pessanha (1867-1926), a de Cesário Verde (1855-1886) e a de António Nobre (1867-1900). Absorvendo esses e outros veios centrais do novecentismo - António Ramos Rosa, Herberto Helder e Ruy Belo -, a poesia do autor de Raptos (1987) nasce em contraciclo ao que Poesia 61 (sobretudo Gastão Cruz, Fiama, Luiza Neto Jorge) tinha instaurado como acção poética: a estética da escassez (em Gastão), a centralidade do substantivo (em Fiama), o “surrealismo vigilante” (em Luiza Neto Jorge). Herdeiro do poema longo que, via Álvaro de Campos e Nobre, encontra em Ramos Rosa, Herberto Helder e Ruy Belo inovadores máximos, Nuno Júdice enfrenta a “crise do verso” de Mallarmé abrindo uma outra porta que tal crise tinha escancarado: a porta da abstracção e da reconstrução, mas sem ceder à alucinação surrealista, preferindo antes o mergulho nos grandes mares do inconsciente colectivo e pessoal. O poema é, assim, o lugar da crise não só do verso, mas da própria ideia da poesia, espaço textual onde o ‘eu’ é palavra pensada duplamente: ela revela o “continente fulgurativo” e é “flor exótica” subitamente escrita e reescrita (leia-se O Voo de Igitur num copo de dados, & etc, 1981, p.16).
Excesso e rigor, em A Noção de Poema (1972) erguia-se “uma poesia que as máquinas podiam fazer”, ciente, o fazedor das imagens de que “cada uma das palavras é um processo formal”. Curiosamente, dentro desse rigor que se traduz na torrencialidade verbal, esticando os versos, o que inicialmente lemos em Júdice é a recusa “das meditações lúcidas ou juízos coerentes”. O poeta é alguém que persegue “apenas figuras contraditórias que o raciocínio sintetizou de ambientes irreais e desesperados.”
Um princípio de poética é, em 72, exposto assim: “A vocação é um ritual que a matemática condena. A inocência é uma obsessão desvirtuada. Recuso as explicações metafísicas.” Olha-se de frente a tradição lírica ocidental. A poesia será o teatro onde uma personagem, uma cena, um ambiente onírico, esplendem na página. Do livro-manifesto de 72, onde se afirmava uma voz forte (sem ser panfletária), retira-se uma ideia central: a poesia basta-se a si própria, a sua realidade única é a linguagem e a sua inutilidade é o que lhe garante a autonomia e a autoridade no seio da polis. Assim, declarava: “Eis-me, em 18 de maio de 1969, pensando naqueles lugares e na sua população de mortos. Eu, um poeta desordenado, acreditando na razão das palavras, / nada sabendo sobre mim” (p.73).
Nascendo, portanto, da memória ancestral do poético, um livro como Crítica Doméstica dos Paralelepípedos (1973), de inusitado título, compreende-se: ele é necessário volte-face do projecto inicial da poesia. À teoria sobre o poema, a ousada proposta de uma “crítica doméstica” ao real dinamitado que a poesia-crítica produz, extraindo do romantismo mais sacral (Holderlin, Novalis), a carga sobrenatural e o gótico, o fascínio da morte e o cemiterial como se no texto fosse possível concretizar a “meditação deambulatória” (disse-o Eduardo Prado Coelho), condição poética e teórica para o eu omnívoro de mundos contar uma história. Sonho, inconsciente, mergulho nos “corredores do poema”, a fábula - a fala - dos textos não só descreve, como ao descrever inventa: o sujeito judiciano é, nesses Anos 70, um marinheiro desarvorado, um náufrago, “alojado no porão do navio”, alguém que se sente no “corpo húmido da [sua] própria respiração”, “dotado do uso da escrita”, redige o novo real “dentro duma lógica rigorosamente ‘escritural’, provocando que me assimilassem ao profeta” (1973).
Com razão escreveu Teresa Almeida no prefácio a Poesia Reunida 1967-2000 (Dom Quixote, 2000), que “o que mais impressiona nos primeiros livros de Nuno Júdice é o regime das imagens e a força das figuras” (p.37): o mar, espécie de “linguagem segunda”, código paralelo ao verbo; lugar de morte, de temporais e de afogados. Os portos, as praias, as viagens, os cais, as “mulheres loucas, bêbados, viajantes sem destino” concretizam a liberdade livre de Rimbaud, um dos eixos fundadores da obra de Nuno Júdice. É o vocabulário marítimo que mapeia esta poesia, a qual, a partir de 1982, com A Partilha dos Mitos, e Lira de Líquen (1985), muda o seu registo. À poesia hiperbólica, feita de disrupções e certo sensualismo, prefere-se agora uma estética da alusão. A escrita recairá na teorização obsessiva do que é escrever, do que é a arte, num processo de exigente intertextualidade, aproximando a poesia do registo do ensaio. Se a ironia compensa o ambiente mórbido de algumas zonas que esta obra frequenta nessa década, certo é que a par da teorização poética, outra teorização se encontra: sobre o caos, autorizando, por vezes, um discurso profético que reenvia à linhagem romântica, uma vez mais: “A crise dos tempos virá. Não sob a forma do poema / revelador, no intervalo de fórmulas suspeitadas pelos / ouvidos ameaçados da sibila […] / É / mais perto, na minha cabeça, no sussurro vertiginoso / dos meus versos, no rio assombrado das estrofes” (in Poesia Reunida, p.268).
Na evolução da sua obra, a trilogia A Condescendência do Ser (1988), Enumeração de Sombras (1989) e As Regras da Perspectiva (1990) marca uma nova inflexão: são textos curtos que, dedicados à teorização do fenómeno poético, encontram em dois versos a explicação para o tom agónico da nossa pós-modernidade sem deuses e sem astros. João Barrento, num dos ensaios capitais sobre a literatura dos anos de 1980/1990 (“O astro baço - A poesia portuguesa sob o signo de Saturno” (in A Palavra Transversal, Cotovia, Lx, 1996)), associa a sensação da perda e da ausência, figuras axiais do poema, ao que em Júdice é o dispositivo irónico. A ironia é a forma compensatória das ruínas. “Relação das Rotas Navais”, nos seus quatro andamentos, não por acaso é o penúltimo de Meditação Sobre Ruínas (1994).É a extensa e profunda elegia do bucolismo, cântico fúnebre sobre uma Europa analisada já na sua “mesa de autópsia”. Esse livro central de Nuno Júdice encerra com um conjunto de sete fragmentos. O poeta constrói as lápides da História, cultiva a inscrição tumular, o epitáfio, em modo clássico: “Aceita o transitório, nada do que / é definitivo, e dura, te pode atingir” (Júdice, 1994:143).
Nos últimos 24 anos de poesia, Nuno Júdice publicou a um ritmo constante: 20 títulos, com inúmeros prémios nacionais e estrangeiros. O Prémio Rainha Sofia Ibero-americano de Poesia, atribuído em 2013, bem como o Prémio Internacional de Poesia Europa In Versi/ Prémio Carreira (2008), o Prémio de Poesia Poetas del Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2014), ou o Prémio Maison de la Poésie de Marrocos, ou ainda o Prémio El Ojo Crítico Iberoamericano da Rádio Nacional de Espanha, os Prémios Carlo Betocchi da cidade de Florença e o Prémio Internacional de Poesia do Festival Poetry & Liquor da cidade de Luzhou, em Sichuan, na China, consagraram-no como o mais internacional dos poetas contemporâneos.
Presente no catálogo da Gallimard (onde saiu Um Canto na Espessura do Tempo), ou nas edições Le Taillis-Près, na Bélgica, Nuno Júdice foi professor universitário na Universidade Nova /FCSH, com tese sobre Literatura Medieval. Exerceu cargos de relevo: foi conselheiro cultural e director do Instituto Camões em Paris (1997-2004), director de revistas de literatura como a Tabacaria (1988-1999), ou a Colóquio-Letras (desde 2010). Mas foi poeta, como sempre quis, alguém fiel à poesia, essa voz antiquíssima “que passa através das épocas e das formas”.
Numa entrevista a Ana Marques Gastão, afirmou: “Cada um dos gestos que conduz ao verso corresponde a uma técnica que concilia a música e a sua articulação com a frase, a pintura subjacente à escolha das imagens e das formas do mundo, a fotografia que fixa o instante em que se condensa o núcleo do poema no sentido do flash herbertiano. A leveza nasce desse magma de materiais - como a estátua se solta do peso da pedra ou do mármore.” (in Ana Marques Gastão, O Falar dos Poetas, Afrontamento, Porto, 2011, p.403). Auto-retrato de onde se retira o modo cerebral e laboratorial de que se pauta a sua escrita.
Para além da poesia, o ensaio (destaco O Processo Poético, de 1992; Viagem por um século de literatura portuguesa, 1997, As Máscaras do Poema, de 1998, e ABC da Crítica, de 2010, para além de prefácios célebres em edições fac-similadas de revistas de poesia do século XX), mas também a ficção (sete romances entre 2003 e 2019 nos últimos 24 anos), sem esquecer o magnífico tradutor de inúmeros poetas de várias literaturas, merecendo-lhe especial atenção a da América latina.
Com Nuno Júdice, creio que finda, agora sim, um tempo literário. Não finda, porém, a energia vital que transparece da obra - sobretudo a poética - de um nome central da cultura portuguesa. Se tivermos de sintetizar as razões da sua poética, talvez os próprios títulos possam indicá-las. Nuno Júdice, o poeta que concebeu a poesia enquanto cartografia de emoções, geometria variável porque a Humanidade, sendo complexa, busca as coisas mais simples e desejando que nas palavras haja a convergência dos ventos, matéria do poema no livro escrito. Ou a poesia como guia de conceitos básicos para explicar as fórmulas de uma luz inexplicável - a vida e a poesia, a vida e a morte, o amor e o desejo.
Perante o coro da desordem da nossa era, em face desse mito de Europa que actualmente se esboroa, Nuno Júdice estudou o estado dos campos, fez do poema navegação de acaso, sempre fiel a uma ideia obsessiva: a poesia é o fruto da gramática. Construiu, assim, uma poética saudosa dum tempo mágico: se quis que ela fosse regresso a um cenário campestre, ou pura inscrição do amor, o autor de Teoria Geral do Sentimento (1999) soube sempre que a poesia se concentraria num gesto e numa imagem: Uma colheita de silêncios. O silêncio precisamente: condição da palavra discreta da poesia. A sensível, inteligente e criativa palavra - a de Júdice, atenta ao enigma mágico de existir.