Fenómeno. No Dicionário Houaiss, o substantivo masculino suscita nada mais nada menos que sete significados. Escolho o nº 3, de cariz filosófico, que leva mais longe o enigma que a palavra pode transportar: “Apreensão ilusória de um objeto, captado pela sensibilidade ou também reconhecido de maneira irrefletida pela consciência imediata, ambas incapazes de alcançar intelectualmente a sua essência.”A exposição de Luís Miguel Cintra, “Pequeno Teatro do Mundo”, patente em Serralves, na Casa do Cinema Manoel de Oliveira (até 22 de fevereiro de 2026), é um dos fenómenos que pude descobrir ao longo de 2025. De tal modo que, empenhado em dar conta da sua “essência”, devo humildemente conter-me. Até porque a essencialização das coisas do mundo, isto é, o congelamento das suas significações atrai a ignorância dos infinitos contrastes de que se faz o fator humano. Sartre o disse a propósito da essencialização do judeu, culpabilizado “apenas” por ser judeu.Que encontramos na exposição? Pois bem, santos e pecadores, animais e soldadinhos, “bonecos” de todos os tamanhos e feitios guardados por Luís Miguel ao longo de muitos anos. Num texto sobre as singularidades da coleção (com um título carinhoso e brincalhão: “Estes trastes”), ele próprio é levado a interrogar-se, já que as “peças” que enchiam a sua casa de Lisboa o envolvem numa suave hesitação: “(...) a melancolia vem espreitar, pesa e paralisa-me também, tanto que nem sei como chamar-lhes: Santos? Esculturas? Bonecos? Coisas? No fundo já se veem a si próprias como coisas do passado, cheias de fraturas remendadas com cola UHU. Que vão fazer para Serralves?”.Na apresentação da exposição, António Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, avança com uma preciosa descrição: “Todas juntas, estas figuras são, no fim de contas, uma inusitada trupe de teatro; quando somadas, serão por certo a maior companhia residente de que há memória.” Luís Miguel surge, assim, como criador de uma peculiar teatralidade: “(...) o encenador faz destes bonecos atores, personagens que, sendo por si sós portadores de textos, de histórias e desentidos muito diversos, são compelidos a interagir de formas inesperadas numa polifonia de gestos, de olhares, de expressões.”Antes de entrarmos na exposição propriamente dita, podemos ver as magníficas fotografias feitas por André Cepeda na casa de Lisboa. Não são um guia a antever o que vamos descobrir lá dentro, antes uma antologia de fragmentos solitários que, em boa verdade, não se repete na sala de Serralves — mais do que isso: não poderia repetir-se.Dito de outro modo: não estamos perante uma “coleção de arte”, ainda menos uma antologia de temas, formas, estilos, épocas ou tendências. E se há objetos que nos surpreendem pela sedução da sua lhaneza artística, isso não invalida que qualquer um deles, grande ou pequeno, frágil ou pomposo (por vezes, frágil e pomposo) se distinga por uma ambígua monumentalidade: cada um possui uma verdade existencial que resiste a diluir-se na verdade do parceiro do lado.Escusado será sublinhar que este “Pequeno Teatro do Mundo” resiste, ponto por ponto, peça a peça, a qualquer dicotomia tradicional sobre a “seriedade” de alguma arte contra a “futilidade” de outra. No limite, talvez possamos mesmo dizer que somos levados a descobrir (e, num certo sentido, habitar) um espaço em que alguém esboça um pudico gesto autobiográfico, em tudo e por tudo oposto à pornografia confessional que as televisões todos os dias promovem. René Magritte ensinou-nos a viver com essa estranheza das coisas do mundo, pelo que podemos arriscar parafraseá-lo para descrever tão maravilhoso fenómeno: “Isto não é uma exposição”.Jornalista