Navio Odysseus: mais do que uma operação, um sintoma de um problema estrutural!

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O navio mercante ao largo do Algarve.
O navio mercante ao largo do Algarve.D.R.

No dia 3 de setembro, pelas 23h00, o Centro de Operações Marítimas (COMAR), instalado na Base Naval do Alfeite, recebeu um alerta do Centro de Controlo de Tráfego Marítimo (CCTM), na sequência de uma comunicação do navio mercante ODYSSEUS. Já dentro das águas territoriais portuguesas, o Capitão do Porto de Portimão acionou os meios da Autoridade Marítima Nacional (AMN) e solicitou apoio da Marinha de Guerra Portuguesa.

De acordo com as notícias da comunicação social a operação culminou com a abordagem ao navio a cerca de seis milhas da costa algarvia, realizada por uma equipa conjunta composta por elementos da AMN e da Marinha. Segundo os comunicados oficiais, a ação visou restaurar as condições de segurança a bordo. O navio seguiu posteriormente rumo a Sines, "em segurança".

Perante o sucedido, a Associação de Inspetores e Chefes da Polícia Marítima (AICPM) veio a público levantar questões sobre a legalidade da intervenção da Marinha, sugerindo uma possível violação da Constituição da República Portuguesa, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e da Lei de Segurança Interna. Em causa estará o facto de se tratar, alegadamente, de uma operação de natureza tático-policial — competência da Polícia Marítima (PM) — cuja condução poderá ter envolvido, de forma direta ou indireta, uma força militar, nomeadamente a Marinha de Guerra Portuguesa (MGP), levantando dúvidas sobre a eventual existência de interferência ou mesmo de comando militar na operação.

Mas as dúvidas acumulam-se! No seu sítio oficial, a Marinha de Guerra Portuguesa (MGP) afirma que “…o Capitão do Porto de Portimão acionou os meios da Autoridade Marítima Nacional, designadamente da Polícia Marítima, e solicitou o apoio da Marinha…”. Contudo, importa questionar em que qualidade atuou o Capitão do Porto ao desencadear esta operação? Estávamos perante uma intervenção no âmbito do safety, centrada na salvaguarda da navegação e da segurança marítima, ou tratou-se de uma operação de security, com natureza policial e implicações ao nível da segurança interna e da ordem pública? A distinção não é meramente terminológica, é jurídica e funcional. Se a intervenção se enquadrava no domínio do security, então, caberia exclusivamente à Polícia Marítima a sua condução, sob coordenação e controlo das autoridades judiciárias e de segurança interna competentes.

Neste contexto, permanece por esclarecer se a atuação do Capitão do Porto, mesmo acumulando funções na Polícia Marítima, respeitou os limites legais da sua competência, ou se terá extravasado para o exercício de funções de natureza policial que exigiriam outra legitimidade e supervisão, nomeadamente a do Ministério Público, se este acompanhou a operação, como é exigido nestes casos? Se o Gabinete do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SSI) foi informado? E que tipo de apoio foi realmente solicitado à Marinha, meios humanos, embarcações, armamento? Nenhuma dessas respostas foi, até agora, tornada pública. E o silêncio institucional é, em si, revelador.

Militares a Comandar Polícias: Um Modelo Que Já Não Serve

Portugal vive com um modelo híbrido e ultrapassado de Autoridade Marítima. O Capitão do Porto — figura central desta estrutura — é um militar, oficial superior da Marinha de Guerra em comissão de serviço, que acumula funções administrativas, policiais e operacionais. Comanda a Polícia Marítima local por inerência de funções, fiscaliza, licencia, regista embarcações, lidera operações e responde a uma hierarquia militar, ainda que atue em contexto civil.

Na Madeira, o exemplo é extremo: o Capitão do Porto do Funchal exerce sete cargos distintos — militares, administrativos e policiais — parte deles por inerência de funções e sem separação clara de competências. Uma situação institucionalmente insustentável.

Promessas Vazias e Reformas Que Nunca Vieram

Em 2012, o então Ministro da Defesa Nacional (MDN) Dr. José Pedro Aguiar-Branco, hoje Presidente da Assembleia da República, determinou, através do Despacho n.º 4810/2012, a necessidade de rever e clarificar o Sistema de Autoridade Marítima. O objetivo era nobre, clarificar competências, separar o civil do militar, modernizar a estrutura.

Mas o resultado não foi nada do que se pensou, pelo contrário, a alteração consumada foi somente a nomeação do Chefe do Estado-Maior da Armada como Autoridade Marítima Nacional também por inerência de funções, agravando desta forma a militarização da Polícia Marítima. A PM continua, até hoje, sem lei orgânica, sem estatuto próprio e sem regime retributivo adequado. A reforma ficou na gaveta, como tantas outras.

Demasiadas Forças, Pouca Coordenação

Portugal conta com 12 órgãos de polícia criminal (OPC), entre os quais apenas três — PJ, PSP e GNR — têm competência genérica para investigação criminal. Os restantes, como a PM, ASAE ou AT, atuam em domínios específicos e limitados.

Ainda mais preocupante, foram os grupos de intervenção especial, criados à margem da lei, sem aprovação parlamentar. Entre outros grupos, a Polícia Marítima possui um Grupo de Ações Táticas (GAT), treinado para ações deste tipo, constituído por despacho interno e sem base legal. Já os GOE (PSP), GIOE (GNR) e DAE (Fuzileiros) têm enquadramento legal sólido. Esta disparidade não é apenas técnica, é institucional e política.

Reformar ou Continuar a Fingir?

Este não é um problema novo. Nos últimos 30 anos, a Associação Socio Profissional da Polícia Marítima (ASPPM) têm denunciado, repetidamente, a confusão de competências, a ausência de legislação específica, e a subordinação de uma polícia civil a uma cadeia de comando militar. As reações a este problema são breves indignações públicas sempre que o tema "rebenta", seguidas de um silêncio cúmplice, sobretudo por parte dos decisores políticos, que receiam afrontar o imobilismo do Almirantado da Marinha de Guerra mais antiga do mundo.

A verdade é simples, Portugal precisa de decidir que Polícia Marítima quer ter, e que modelo de segurança interna pretende adotar no século XXI.

É hora de fazer escolhas corajosas, o episódio do ODYSSEUS expôs, mais uma vez, os limites do atual modelo. Por isso, torna-se urgente esclarecer publicamente e apurar responsabilidades se for o caso, pela forma como a operação foi conduzida, clarificar o papel da Polícia Marítima, libertando-a da tutela militar e dotando-a de meios legais e operacionais adequados, ou, considerar a integração da Unidade de Controlo Costeiro da GNR na Polícia Marítima civil, ou ainda, uma reforma mais ambiciosa que passará por criar uma Polícia Nacional unificada, com sistema de informação centralizado, formação comum, estatuto e remuneração harmonizados, e uma única lei orgânica.

Enquanto militares comandarem polícias, enquanto forças especiais forem criadas à revelia da Assembleia da República, e enquanto as operações forem conduzidas em zonas cinzentas da lei, a segurança interna de Portugal continuará a ser vulnerável e a democracia, mais frágil.

A ASPPM há décadas que vem denunciando casos como este e exige que o poder político finalmente assuma as suas responsabilidades. O tempo da ambiguidade acabou. O país precisa de uma reforma profunda, clara e corajosa no sistema policial português.

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