Natal e Passagem de Ano em “tempos líquidos”

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O Dezembro chega sempre luminoso, com ruas decoradas, músicas repetidas sem fim e campanhas que juram que este é “o Natal mais especial de sempre”. Mas por trás das luzes instala-se uma ansiedade discreta e quase coreografada. O Natal e a passagem de ano, que antes eram fronteiras sólidas no calendário, de pausa, balanço e encontro, tornaram-se mais dois episódios na longa série da nossa vida performativa.

O filósofo Zygmunt Bauman chamou-lhe “modernidade líquida”, um tempo em que nada se fixa, nada descansa e nada dura o suficiente para ganhar significado. E nesta liquidez até o Natal se dissolve. Já não é apenas família, mesa e acolhimento, passou a ser conteúdo, estética e prova social. As tradições transformaram-se em tendências, o espírito em decoração e a esperança em publicações com likes nas redes sociais.

A mesa, que deveria ser o espaço mais humano, tornou-se um palco improvisado. O telemóvel, esse novo centro de gravidade, senta-se connosco e rouba o protagonismo sem pedir licença. Entre pratos e conversas, fingimos naturalidade enquanto verificamos se a foto da ceia ficou “natalícia o suficiente” para publicar no Instagram. O brilho das luzes já não é para os olhos, mas para o algoritmo.

Huxley imaginou, no Admirável Mundo Novo, o “soma” como um antídoto e a solução perfeita para evitar qualquer desconforto. Sempre que surgia tristeza, tédio ou dúvida, tomava-se uma dose e o problema deixava de ser sentido. No Natal de hoje, essa função é cumprida pelo consumo, com compras apressadas, promoções “imperdíveis” e mesas cheias, que funcionam como anestesia emocional. Evita-se o silêncio e adiam-se perguntas difíceis sobre solidão, cansaço ou insatisfação.

É neste mesmo registo que surgem também os discursos políticos da época. O recente discurso de Natal de Luís Montenegro foi marcado por palavras motivacionais, apelos à confiança e à esperança num futuro melhor, cuidadosamente desprovidas de conflito e de responsabilidade concreta. Um discurso tranquilizador, mas vazio, agregador no tom, mas incapaz de enfrentar as causas reais da precariedade, da desigualdade e da exaustão social. Tal como o consumo festivo, serve para acalmar e não para resolver.

Quando o Natal passa, acredita-se que a salvação virá com a passagem do ano. A meia-noite torna-se o minuto mais ensaiado do calendário, com selfies perfeitas, taças erguidas e promessas partilháveis. Um segundo antes somos pessoas e um segundo depois voltamos ao marketing pessoal. As expectativas são tão altas que raramente pertencem à vida real.

Vivemos a noite de 31 como extensão da sociedade do desempenho. As resoluções não são desejos, são metas, métricas e autoexigências embrulhadas em positivismo tóxico, para “ser mais”, “produzir mais” e “atingir mais”.

Contudo a vida, que não cabe nos stories, acontece nos intervalos, nos silêncios desconfortáveis do jantar de Natal, na nostalgia que surge ao ouvir o relógio marcar a meia-noite, nas cadeiras vazias que lembram quem já não está, nas conversas tímidas que sobrevivem à pressa do mundo. É aí que reside o sólido que há em nós e aquilo que ainda resiste à corrente.

Talvez o gesto mais radical desta época seja um simples desligar e olhar nos olhos uns dos outros e não para o ecrã. Aceitar que o Natal não é perfeito e que o ano novo não começa limpo de problemas. Trocar um presente comprado por um gesto atento, ouvir sem pressa, falar sem medo e brindar ao que ficou e ao que ainda não sabemos nomear.

Porque num tempo tão líquido, onde até os discursos se tornaram anestesia, a verdadeira celebração está no reconhecimento sólido das nossas imperfeições e na coragem de decidir parar, para que o Natal recupere a sua profundidade e a passagem de ano volte à realidade e se liberte da pressão.

Especialista em governação eletrónica

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