Um dos perigos deste tempo em que vivemos é o da corrosão das palavras. Há palavras que são usadas à exaustão e deixam de significar o que significam. Há palavras que são apropriadas por quem faz exatamente o contrário do que essas palavras querem dizer. Há palavras que vão gerando narrativas que, apesar de falsas, se tornam aceites e que condicionam todo o debate, as políticas públicas e o dia-a-dia de todas as pessoas. E tudo isto tem consequências enormes na forma como nos relacionamos uns com os outros - se não confiamos nas palavras (e na palavra) uns dos outros, como construímos um futuro comum?Há muitos exemplos diários desta corrosão das palavras mas hoje pensei nisto a propósito da palavra “moderado”.Na semana passada, o governo apresentou o há muito prometido “choque” para a habitação, onde acaba com a renda acessível e cria o conceito de renda moderada - definindo como limite dessa moderação 2300 euros mensais. Claro que a indignação está a ser enorme: num país onde metade dos trabalhadores leva para casa menos de 1000 euros por mês e onde o salário médio líquido de um casal de trabalhadores por conta de outrem é à volta de 2300 euros, uma renda de 2300 euros não pode ser chamada de “moderada”. Mas o governo não se ficou pelo arrendamento: também a compra de uma casa até 648.000 euros é considerada “moderada”. Quem consegue um empréstimo para comprar uma casa de mais de meio milhão de euros? Para um problema gigante de acesso à habitação, precisamos sim de habitação acessível e esse conceito nunca deveria cair. Usar a “moderado” com estes valores de referência é aceitar - e contribuir para a aceitação - de que os valores atuais das casas em Portugal são normais.Mas este não é apenas um problema de palavras e de redefinição do que achamos normal - ou moderado. É que atrás desta nova farsa de “moderação” vêm benefícios fiscais para senhorios que cobrem rendas até 2300 euros e benefícios fiscais para promotores imobiliários que construam casas para vender até 648.000 euros. Ou seja, de uma assentada, o governo normaliza os preços absurdos das casas em Portugal, beneficia quem menos precisa, abdica de receita fiscal que podia usar para as políticas de habitação verdadeiramente acessível e, pior, contribui para a continuação do aumento do preço das casas em Portugal.Quando estava a pensar na escolha da palavra “moderado” pelo governo, lembrei-me que não foi a primeira vez que assistimos ao uso abusivo e retorcido da palavra “moderado”. Tem sido usada recorrentemente por quem se advoga de uma suposta virtude face ao suposto extremismo de todos os outros, enquanto se encosta a quem é tudo menos moderado. Tem sido assim com Carlos Moedas, que vende uma Lisboa violenta não baseada em factos e que se proclama acima dos partidos e das ideologias, enquanto aplica em Lisboa uma agenda altamente ideológica - basta ver o que não foi feito para baixar os preços das casas e garantir habitação verdadeiramente (lá está) acessível. Tem sido assim com Luís Montenegro, que promete o moderado “não é não” mas depois governa em função do extremismo da extrema-direita. E foi assim esta semana com Leitão Amaro, que apresentou como moderadas as desumanas alterações à Lei dos Estrangeiros.O resgate da política e da construção do bem comum passa por medidas concretas e pela defesa da nossa democracia. E também passa pela salvaguarda das palavras e do seu significado. Não deixemos que nos corroam as palavras. Líder parlamentar do Livre