Memória transitiva. Um livro de Manuel Alegre

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Num livro absolutamente maravilhoso, Le Sens de la Mémoire (Gallimard), Jean-Yves e Marc Tadié referem-se à memória como um mecanismo de sondagem das imagens primordiais que age retro e prospectivamente. A memória actua num movimento de pinça: rodeia, cerca, envolve um sem-número de referências da biografia em torno de um ponto central: a recordação de alguém, a marca de um acontecimento, a idealização futurante do desejo a cumprir.

Manuel Alegre dá-nos, com a publicação de Memórias Minhas (Dom Quixote) uma outra oportunidade para nos acercarmos da literatura como trabalho da memória. Este livro pode ler-se como um puzzle, ou como uma espécie de caleidoscópio, já que é prismática, multiplicada e histórica - na diacronia e na sincronia - a paleta de cores, de ambiências, de cenas vivas que o poeta de Atlântico vai organizando num livro constituído por sequências, encimadas todas por títulos que ajudam o leitor a colocar-se no tempo e no espaço da rememoração.

Há, evidentemente, como referem Tadié e Jean-Yves, na construção do sentido da memória, a convocação de estratégias de sobrevivência. O memorialista que é Manuel Alegre obedece à mais clássica das intenções deste género literário: falando de si o que se quer é falar dos outros e dum dado tempo de vida. O balanço existencial protege o sujeito dos textos - todos na primeira pessoa, efabulando um “Manuel Alegre” que será vários ‘eus’ da História: de Camões a Mendes Pinto, dos seus progenitores e antepassados familiares ao povo que, como poucos, Alegre sente ser seu e de que ele é, talvez, o último fiel narrador - da tentação (fácil) do auto-elogio. Não. Há mesmo páginas de grande crueza e lucidez (destaco as referentes ao tempo das candidaturas presidenciais em que a leitura dos factos políticos exige a coragem de afirmar que não era esse o tempo para haver Alegre, Presidente de todos os portugueses). Páginas relativas à experiência da prisão, dos interrogatórios pelos esbirros da PIDE; páginas sobre a experiência medular do exílio, essas não são páginas de auto-retrato heróico. Uma palavra surge a moldar o discurso da memória: irremediável.

Irremediável o conhecimento da poesia (o testemunho sobre o conhecimento de Pessoa aos 18 anos deveria ser dado a ler aos mais jovens hoje, carentes que estão de quem lhes diga o significado da palavra de poesia, seu potencial vital, sua exigência e rigor); irremediável a memória no seu ser-sondagem, misturando num caudal poético de imagens, o presente e o passado: uma página onde se conta um sucesso de 1961, e ao lado desse tempo, outra onde se fala dum jardineiro, homem do povo: “O tempo, minha senhora, está a causticar na favorita da Primavera” (frase que ficou na família de Alegre), como quem diz, “Está mau tempo. Há nuvens.”. É um delicioso momento este em que o memorialista partilha com os leitores a privacidade do lar, mas a partir da memória das palavras: “Quando estou sentado na sala e vejo o céu carregado, olho para o retrato da minha avó, aceno que sim com a cabeça e acho que ela está a ouvir o jardineiro: “O tempo está a causticar na favorita da Primavera.” (p.25).

Manuel Alegre escreve não no gume da faca (como um Cardoso Pires), mas, se quisermos usar uma imagem poética (estamos perante um poeta e as suas memórias), na curva mais lancinante dos afectos. O discurso de primeira pessoa reforça essa emoção que se vai temperando de análise e de interpretação (“Talvez não acreditem, mas há um código nos retratos. Pode ser positivo ou negativo. O olhar de meu avô Manuel Alegre, cujo retrato a óleo é também da autoria de Fausto Sampaio, seu sobrinho, nunca me apaziguou. […] Eu olhava para o retrato e tinha medo.” (p.26). Quer dizer: o percurso vital não nega, antes afirma, a humanidade que pertence a uma linhagem de afectos: da família os avós maternos e paternos, os pais, obviamente, mas que dizer das recordações da escola, dos liceus, os mais diversos, que Alegre frequentou como quem se vai frequentando? Os ecos da IIª Guerra Mundial, as sanhas de racionamento, a humilhação da França em 1940, o S de um país salazarento, a inscrição da família, desde os antepassados mais remotos, liberais, adentro de uma ideologia onde socialismo e republicanismo se dão as mãos, o que mais contribui para o retrato de Manuel Alegre é, porém, o subtil. Melhor: o indirecto, o alusivo discurso que peregrina (exemplo: partida para Lisboa em 1947, ou Alegre, aluno do Passos Manuel). Assim, o memorialista resgata do olvido as paixões e os amores, assim justifica o aparecimento de obras literárias (a novela A Terceira Rosa), com a poesia - sempre a poesia - a dar o tempo e o modo das memórias deste livro.

Manuel Alegre, com Sottomayor Cardia, num comício em Coimbra. Arquivo DN

Coimbra tem, nesta arqueologia aos sentidos de uma vida, uma especial importância: discussão política, fado, futebol, teatro, poesia (Alegre e a deliciosa memória de ser ele o Diabo numa peça de Gil Vicente, expulsando o Fidalgo, José Carlos Vasconcelos - encenação dedicada a Paulo Quintela, o Mestre), tudo vem a ser trabalhado segundo uma lógica propositadamente anacrónica: seria fácil estruturar o livro segundo as datas por que tudo foi acontecendo, mas Alegre prefere os saltos históricos, um fio da memória que pertence a um novelo mais extenso e que o escritor desfia: “40.900. Este é um número de referência na história da luta estudantil contra a ditadura. Foi de certo modo a génese do movimento associativo que nas crises de 1962 e 1969 viria a abalar o regime e a criar uma fractura irreversível entre a maioria dos estudantes, uma boa parte da classe média e o governo. Com o decreto-lei 40.900, o então Ministro da Educação, Leite Pinto, pretendia eliminar a tradicional autonomia das associações de estudantes e colocá-los sob a alçada do seu ministério. […]” (p.66).

Fogo da memória, fogo da pena escrevendo(-se), em Alegre a rememoração ultrapassa a nostalgia: falar de Soares ou de Salgado Zenha, de Zeca Afonso, de Herberto Helder, de Adriano Correia de Oliveira, de Manuel Bandeira, ou de o cinema, da fundação do PS, ou do 25 de Abril, da solidão, do exílio, ou de Ernesto Melo Antunes, tudo vem a ser contributo para um retrato singular: Alegre é Ulisses. Mas é também “Um nó na garganta” - amizades, inimizades, actos de coragem, convivência com o país profundo, as pessoas pobres, Luandino Vieira e Baltasar Lopes, os reenvios para esse grande romance que é Jornada de África, perguntemos: quem pode ficar imune, insensível às páginas onde a denúncia da guerra é já uma forma de afirmar a emergência da poesia de 1965, o cântico de A Praça da Canção?. Um dia dirá: “Ninguém parte para a guerra com alegria.” Fala aos soldados que com ele partiam para a morte. Vencer a morte, ir-se da lei da morte libertando por virtude de actos valerosos, eis um dos eixos deste livro político, poético, labiríntico dédalo semiótico. A memória irrompe, irremediável: “Às vezes ainda sinto os helicópteros a girar dentro de mim. Vinham do Norte. Pela cor da bandeira, sabia-se que transportavam mortos ou feridos […]” (p.120).

Morte e vida, eternidade e lucidez da efemeridade, do muito que podemos dizer sobre este livro de Manuel Alegre, um aspecto há que quero, hoje, deixar bem vincado: Manuel Alegre é, como foi Torga, ou como foi a sua amada Sophia, a voz que podemos escutar como quem ouve o Velho do Restelo, ou ouve a consciência nacional. É importante, pois no momento que atravessamos, de desmemória e reescrita da História, é bom ler Alegre e compreender que nele se cruzam o político culto e o escritor combativo - figura hoje inexistente. O Prémio Camões, na verdade, recebido com orgulho, mas com humildade, inscreve-o, de resto, na linha dos grandes isolados que - mesmo se há quem diga que o facto de ser político desmerece a sua dimensão literária -, por serem homens de cultura na política e homens de política na cultura pagam um altíssimo preço. Conhecedor de Éluard e de Rilke, de Eliot e dos trovadores, bisneto de Gilgamesh, filho de Orfeu, parente próximo dos assírios e da poesia grega, romana, do Renascimento e da Modernidade, digam o que disserem (sim, o jornalismo dos comités da poesia que pretenderam sempre calá-lo e procuram cancelá-lo sem o conseguir), Alegre é um exímio fazedor do verso bem calibrado, Um memorialista que chega a dizer que “não quer consultar qualquer registo” no acto de escrever. Poesia é memória e Alegre sabe-o porque, como Sophia, “os dias foram tensos como um arco” e intensamente vividos. Estas memórias provam-no.

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