1.Convencera o filho de que a vida seria melhor. Mudariam de país e deixariam tudo o que conheciam, mas teriam uma vida nova que lhes daria aquilo que, de outra forma, seria impossível ter. Revelou-se mais difícil do que pensava. Trabalhava sem descanso e tentava enxertar no horário o tratamento da burocracia que ainda restava por resolver. Pensava no filho, nas promessas que lhe fizera e na alegria que lhe via agora nos olhos. Lá continuava a insistir em organizar a vida..2.Agora ali estava, de pernas abertas e mãos ao alto, encostado a uma parede. De uma ponta à outra da rua, gente na mesma situação. A polícia vigilante. Os moradores, sobressaltados, filmando à janela com os telemóveis. Às escondidas, não fosse isso metê-los em problemas..Perguntou o que tinha feito. Responderam-lhe que fizesse o que lhe diziam para que não houvesse problemas..Cumpriu a ordem, mas insistiu nas perguntas. Que mal tinha feito? Porque o obrigavam a encostar-se à parede? Porque o revistavam? Responderam-lhe que também a polícia cumpria ordens. Fazendo o que lhe diziam, não haveria problemas. Se não tinha feito nada de mal, nada tinha a temer..Insistiu que só ali estava de passagem, que apenas procurava ajuda de um amigo, que ia arranjar problemas por se atrasar no regresso ao trabalho. Responderam-lhe que podia não ser nada com ele e insistiram que, se fizesse o que lhe diziam, tudo havia de se resolver rapidamente..3.As notícias sucediam-se. Somavam-se as explicações, as justificações, as opiniões especializadas. Repetiam-se, em ciclo, as imagens dos acontecimentos. E lá estava ele, demasiado longe para poder ser memorizado por quem nunca o tinha visto antes, mas suficientemente perto para ser reconhecido por quem o conhecia bem..essa noite não se ligou a televisão em casa. Ouviu, demoradamente, o filho fazendo o relato das aventuras com os novos amigos portugueses e das brincadeiras que, juntos, faziam na escola. Quis saber de todos os pormenores de cada história e da forma como contornavam as dificuldades quando as palavras de português que aprendera não lhe chegavam ainda para se entenderem plenamente..Fez o filho acreditar que também ele tinha tido um dia bom, ainda que não tão entusiasmante..4.Dias depois, apareceu-lhe pela frente uma mensagem de Natal de um político com grandes responsabilidades..Registou partes que lhe pareciam importantes pelo tom em que eram ditas. Solidariedade. Fraternidade. Justiça. Segurança..As palavras e o tom em que eram ditas não se entrelaçavam com a realidade, nem com os seus sentimentos..Ecoavam-lhe na cabeça memórias de uns dias antes. Mulheres grávidas sem serviços hospitalares. Imigrantes com acesso mais apertado aos serviços de saúde. O sentimento de segurança criado com a humilhação e o abuso que, a custo, havia conseguido ocultar aos olhos do filho..Aquietou-se com a ideia de que a discrepância era irrelevante..Afinal, tinham-lhe dado ordem de pôr as mãos ao alto pelo Natal.