Um dos riscos de titular um texto com um trocadilho baseado numa canção dos Beatles sobre uma experiência com alucinogénios (LSD) é que uma parte considerável dos leitores, incluindo a maioria dos governantes atuais, não “apanhe” a piada. Mas até nisso — acho — é apropriada: é que nós, a maioria dos governados, também estamos à nora com a ideia de que o conceito de “renda moderada” inclui, no entendimento esclarecido do Governo, valores até 2300 euros.E não melhorou com as explicações, temo. É ver a cara de António Costa (o jornalista) na entrevista a Miguel Pinto Luz (o ministro da Habitação) quando este lhe garante que “2300 euros é uma renda para a classe média porque se aplicarmos a taxa de esforço de 40% a um rendimento de 5750 euros de um agregado familiar dá 2300 euros”. “São poucas as famílias com esses rendimentos”, diz o entrevistador. “Não são, são muitas”, responde Pinto Luz, deixando Costa de boca à banda. E o ministro, feliz, insiste: “São números, e eu gosto dos números. É que nós andamos a falar de valores moderados, rendas acessíveis, há muitos anos e não nos preocupamos com uma coisa essencial: o rendimento dos portugueses; o que têm no bolso.” O jornalista, perplexo, lembra ao governante que o salário médio dos portugueses está muito abaixo de 5000 ou até de 2000 euros, e aquele corrobora: sim, é de 1500 euros (na verdade, terá sido este ano de 1200 euros líquidos, ou cerca de 1700 brutos). Para a seguir asseverar que a maioria das rendas praticadas em Lisboa é superior, “em muitas dimensões” (incluindo as da outra dimensão, vulgo espaço?) a 2300 euros.Esta explicação, chamemos-lhe assim, deve ter circulado na área da coligação governamental, porque também o ex-deputado do CDS Diogo Feio a usou num debate na SIC-N, começando aliás por sublinhar que “é muito fácil perceber, apesar de haver muita gente que está com dúvidas”. “Façamos uma conta simples", disse Feio. "Os portugueses podem ter custos máximos na área da habitação até aos 40% do que ganham. Se eu aplicar este conceito e tiver um casal, esse casal terá como rendimento bruto mensal na ordem dos 5600 euros. Dividindo, dá 2800 euros. Isto é o que ganham professores universitários, profissionais liberais, médicos, por aí fora. Esta medida abarca 90% do nosso imobiliário atualmente.”Perceberam? De certeza que sim, porque é muito simples. Então, para começar, em 2024 dos um pouco menos de cinco milhões de trabalhadores existentes em Portugal (4,75 milhões) só 5,77% tinham uma remuneração bruta mensal regular (o que inclui o subsídio de alimentação) superior a 2000 euros. Só que — algo que pelos vistos o Governo esqueceu — esses salários pagam impostos e Segurança Social. No conjunto, pagam mais que os 25% a que até agora eram taxadas as rendas. Assim, se tivermos em consideração valores líquidos — aqueles com que se tem de contar para efetuar aquele cálculo dos 40% do rendimento disponível — são naturalmente ainda menos os que podem gabar-se de auferir mais de 2000 euros. O que significa que a “explicação” que o Governo difundiu entre os seus apoiantes começa logo aí por não ter ponta por onde se lhe pegue: é que um casal com um rendimento bruto mensal de 5750 euros não tem — nem pouco mais ou menos — um rendimento líquido mensal desse valor.Mas há mais motivos para achar que o Executivo de Luís Montenegro anda a consumir cogumelos mágicos. É que este conceito da “renda moderada” serve para definir o universo das rendas que, de acordo com a proposta, passarão a pagar uma taxa de IRS de 10% — menos 15 pontos percentuais que a taxa normal sobre as rendas. E isto, explica Miguel Pinto Luz (na mesma entrevista), porque “queremos melhor redistribuição da riqueza gerada para poder garantir a cada português uma habitação condigna e educação condigna, saúde de qualidade, dar igualdade a todos os portugueses”.Portanto o Governo quer melhorar substancialmente o rendimento dos proprietários que arrendam casas com rendas até uns mui módicos 2300 euros para melhor redistribuir a riqueza gerada? Sério?Basta pensar na taxa média de retenção de IRS de um salário bruto de 2300 euros (25,83%) para ser evidente a injustiça social e económica de baixar para 10% o imposto sobre as rendas desse valor. Por que carga de água o mesmo rendimento, se proveniente do trabalho por conta de outrem, havia de ser muitíssimo mais taxado que o rendimento de um imóvel?E a quanto orçará esta perda de receita fiscal, ou seja, esta transferência direta dos cofres dos Estado para os senhorios? Até agora Pinto Luz, malgrado vangloriar-se de tanto gostar de números, não apresentou qualquer estimativa. Tomemos como fonte o último grande relatório sobre arrendamento (de 2023), que se baseia no Censos de 2021. Existiam nesse ano 923 mil arrendamentos habitacionais no país, 151 620 (16,4%) anteriores a 1991, ou seja, com rendas congeladas, que desde 2024 não pagam (e bem) IRS. Ficam 772 mil arrendamentos sujeitos a IRS/IRC. Em 2021, só havia 57 mil contratos com valores entre 650 e 999,99 euros, o que quer dizer que a maioria das rendas estavam abaixo de 650 euros. Vamos então usar um valor médio nacional de renda baixo — muito provavelmente errado tendo em conta que os preços subiram muitíssimo, e que os locais onde mais subiram são também aqueles onde ocorreram mais novos arrendamentos nos últimos anos (Lisboa, Porto e Algarve) —, digamos 300 euros.Temos pois 3600 euros anuais (300 vezes 12). Multiplicando por 772 mil arrendamentos, dá quase três mil milhões de euros (2 779 200 mil). Aplicando a este valor a taxa de imposto de 25%, entrariam cerca de 700 milhões nos cofres do Estado (694,8). Com a taxa de 10%, a receita fiscal desce para 278 milhões. A diferença é de mais de 400 milhões.Agora pensemos nas rendas de 2000 euros, que o Governo considera “moderadas”, e Pinto Luz assevera serem do mais comum que há em Lisboa. Vamos admitir que correspondem a 5% das rendas praticadas em Portugal, ou seja, para o universo de 772 mil arrendamentos, 38 600 contratos. Temos então 24 mil euros (12 vezes 2000) a multiplicar por esse número de contratos, ou seja 926,4 milhões. 25% disso são 231,6 milhões; 10% são 92,6 milhões. Ou seja, os arrendamentos com valores na ordem dos 2000 euros receberão uma parte muito significativa da “borla fiscal” que o Governo está a propor oferecer aos senhorios — e sem qualquer condição associada.Antes, com base no conceito de “arrendamento acessível”, estipulado numa tabela, publicada em Diário da República, com valores por metro quadrado a partir do índice de preços do INE para cada região, os senhorios tinham a possibilidade de pagar menos imposto se aumentassem o prazo do contrato (a partir de cinco anos, taxa de 15%; a partir de 10 anos, 10%; a partir de 20 anos, 5%) e a renda não ultrapassasse em 20% o valor da renda acessível (que, diga-se, não era assim tão baixa). Com esta proposta, desaparecem todas as condições: é simplesmente agarrar em centenas de milhões de euros e oferecê-los aos proprietários, a pretexto de se crer que há quem não arrende porque o imposto é alto. No país com o rendimento per capita mais alto da União Europeia — o Luxemburgo —, onde o salário médio está entre 4000 e 6000 euros e o centro-direita tem governado na maior parte das últimas décadas, as rendas não podem exceder um valor anual correspondente a 5% do capital investido e os inquilinos, se considerarem a renda alta, têm recurso para uma “Comissão do Arrendamento”. A exceção a esta regra legal são os apartamentos considerados “de luxo” — aqueles com renda a partir de 2500 euros. Praticamente uma renda moderada em Portugal — sob efeito de PSD, bem entendido.