Levar direitos a sério

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A recente decisão de promulgação pelo Presidente da República do novo decreto aprovado pela Assembleia da República, por proposta do Governo, sobre o “regime dos estrangeiros” em Portugal, não anulou de forma absoluta o risco de inconstitucionalidade de diversas das suas normas. Será questão, seguramente, que em breve o Tribunal Constitucional terá de voltar a apreciar, agora ao abrigo da fiscalização sucessiva da constitucionalidade.

Para além dos aspetos materiais de eventual desconformidade com a Constituição que o Tribunal analisou, e que terão sido na leitura do Presidente da República, na segunda versão do diploma, melhorados, há um, contudo, que, independentemente da sua legalidade face à lei fundamental – um juízo que é sempre conjuntural, apesar da sua seriedade interpretativa –, que creio que passou ao lado da notoriedade pública e ao qual valeria a pena regressar. Trata-se do dever legal, imposto agora, de um juiz dever considerar em relação à AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo, na sentença que assuma numa intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, “o número de procedimentos administrativos que correm junto daquela entidade, em face de eventuais pressões anormais de pedidos e solicitações, os meios humanos, administrativos e financeiros disponíveis, que é razoável esperar, bem como ter em conta as consequências que possam resultar da intimação para o tratamento equitativo de todos os requerimentos dirigidos à AIMA, IP” (n.º 3 do artigo 87.º-B aditado à lei n.º 23/2007, de 4 de julho, pelo decreto aprovado pela Assembleia).

Entendeu o Tribunal Constitucional, por maioria, que estaria aqui em causa essencialmente, nos deveres agora decretados ao juiz, cuidados adicionais na fixação de um novo prazo de decisão para o cumprimento dos deveres legais em causa por parte da AIMA, tipicamente perante atrasos muito relevantes face aos prazos legais. No entanto, perante a norma em causa, é francamente discutível se essa interpretação, limitada, possa ser de facto a melhor interpretação.

O risco, a meu ver inadmissível, é o de que, por esta via, se esteja a obrigar um tribunal a averiguar se uma entidade da administração tem algum respaldo, a ser validado judicialmente, para o incumprimento de prazos fixados na lei para dar resposta aos cidadãos. Pede-se, no fundo, ao juiz que averigue se determinada entidade pública detém “os meios humanos, administrativos e financeiros disponíveis”, para decidir no tempo que o Estado lhe atribuiu para decidir e, na verdade, só o poderá fazer com base em informação que eventualmente a entidade pública entregue ao processo. E pede-se que, perante um seu juízo de “exclusão de culpa”, branqueie esse atraso e o torne irrelevante, demolindo, caso a caso, um procedimento cujos passos e tempos foram tornados gerais e públicos, e invalidando a boa-fé e a previsibilidade de atuação que se espera das entidades públicas.

Compreende-se um sentido de interpretação percebido pelo Tribunal Constitucional, bondoso num sentido de igualdade, desde logo o de se evitar que um requerente que use uma ação judicial para obter uma decisão devida seja, apenas por esse facto, colocado numa situação mais favorável do que um requerente, até em situação materialmente idêntica, que não obteve esse conselho ou possibilidade. No entanto, o risco de alocar aos tribunais aquele juízo, perante o incumprimento do Estado, é, a meu ver, demasiadamente elevado. Em caso de incumprimento pela Administração dos procedimentos e dos prazos legalmente fixados para a sua resposta, especialmente “em face de eventuais pressões anormais de pedidos e solicitações”, a solução deve estar no campo da decisão substantiva política e administrativa e não na limitação da apreciação judicial dos deveres a que o próprio Estado se vinculou. Não se deve pedir a um juiz que ratifique uma posição de “deveria ter sido decidido, não foi, parece que não havia meios para o ser e, portanto, está tudo bem”. Este é um caminho que não deve ser iniciado, o da desvalorização processual dos tempos de decisão do Estado perante as pessoas. Mesmo que os estudantes que não tenham professores nas escolas, os doentes com consultas e cirurgias em atraso no SNS ou os réus, arguidos e autores com atrasos nas decisões da justiça possam estar a caminho. Se um Estado quer limitar direitos e o seu uso, deve fazê-lo com clareza e lealdade.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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