Como sempre, Laudemir, 44 anos, saiu de casa na madrugada de segunda-feira, 11, para trabalhar numa viatura da limpeza urbana de Belo Horizonte, sexta cidade mais populosa do Brasil. Na gíria do português local era um “gari”. E dos melhores. “Nunca faltou ao serviço, sempre foi muito esforçado desde que começou a trabalhar para nós há oito anos”, resumiu Ivanildo Lopes, proprietário da Localix Serviços Ambientais e patrão de Laudemir.“Além disso”, prosseguiu, “nunca discutiu, nunca brigou, estava sempre a apaziguar qualquer situação”. “Sobretudo no trânsito, os garis sabem onde pisam, eles são preparados para saber onde vão trabalhar e o que falar”, continuou, ao jornal O Tempo. “Fora do trabalho? Um coração gigante dedicado à mulher e à filha”. Renê, 47 anos, saiu de casa naquela mesma segunda-feira mas rumo a um ginásio caro da cidade. Nas redes sociais, além do corpo anabolizado, Renê, casado com uma delegada de polícia, exibe para os quase 30 mil seguidores um currículo também anabolizado: “Transformo empresas e acelero resultados através de liderança estratégica e inovação.” Define-se como “cristão, marido, pai & patriota” (aliás, como christian, husband, father & patriot porque em inglês soa mais chique) e garante que trabalhou “na Vigor, na Coca Cola, na Ambev, na Red Bull” e, ultimamente, “como CEO da Fictor Alimentos”, empresa que, porém, negou em nota ao site G1, qualquer relação com o empresário.Os caminhos de um, Laudemir, e de outro, Renê, cruzaram-se na tal manhã de segunda, 11, no bairro Vista Alegre. O gari pendurado na viatura da limpeza, o CEO ao volante de um moderno automóvel elétrico. Testemunhas relataram que “a viatura de coleta estava parada para recolher resíduos quando o motorista de um BYD cinza se irritou, alegando congestionamento”.A condutora do veículo ainda disse “dá para passar” mas Renê, armado, ameaçou que lhe iria dar "um tiro na cara”. Em seguida, desembarcou e efetuou o disparo que atingiu o parceiro dela, Laudemir.Por volta das 9h00, a polícia encontrou a vítima no chão, com um sangramento na região torácica. Foi socorrido no hospital mas não resistiu à perfuração da bala. A perícia recolheu no local um cartucho intacto e outro deflagrado, ambos calibre .380, compatíveis com a arma da mulher de Renê.O suspeito entrou no carro e fugiu mas foi preso horas depois quando, como se nada fosse, já se exercitava no tal ginásio. “Isto aconteceu apenas por falta de paciência com quem estava limpando a rua, trazendo bem-estar para a sociedade", lamentou o patrão de Laudemir. ‘Quem vai cuidar da filha dele agora?”, perguntou, no velório, terça-feira, 12.Em Construção, eleita em 2009 pela Rolling Stone “a melhor canção brasileira de sempre”, Chico Buarque canta que um operário, invisível para a sociedade, “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Na música, trágica, foi num acidente. Na realidade, muito mais trágica, o gari foi assassinado por atrapalhar o horário de ginásio de um CEO cristão e patriota. Jornalista