Kafka à Beira Mar? Alguns episódios sobre imigrantes em Portugal

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Quem lê as notícias recentes sobre imigração nos nossos media vai achar que estamos a viver um cenário digno de Kafka ou no surrealismo de Murakami. É assim? Sim e não. É importante distinguir claramente os casos, sob pena de, se tratarmos tudo como surrealismo, podermos acomodar-nos a uma nova banalidade.

Por exemplo, há situações em que se trata apenas da mera aplicação da lei, e daquilo que nos exige o Direito da União Europeia, como o cancelamento de autorizações de residência obtidas de forma fraudulenta. Saber se isso é verdade ou não, é algo que cumpre apurar em sede própria, mas estas medidas são, em si, legítimas e somos até vinculados a tomá-las. Depois: nem todas as pessoas que chegam em embarcações, seja onde for, são refugiadas. Por isso, quanto àquele barco vindo de Marrocos, Portugal fez exatamente o que o Direito exige: atender imediatamente às necessidades de todos, selecionar quem tinha direito a receber proteção internacional, e mandar de volta quem não possuía tal direito. São as regras do jogo num mundo de Estados soberanos.

Depois, sim, temos casos “kafkianos”. Normalmente nem são casos de ilegalidade, mas sim situações em que se pretendia cumprir formalmente a lei, só que existiu ou uma absoluta incompetência ou uma obsessão cega com regras formais – e uma insciência total em relação a tudo o que estava em causa.

Há umas semanas houve uma manifestação devido à detenção de um cidadão imigrante, no Porto. Alegadamente, teria pedido a residência num outro Estado-Membro, e não tendo conseguido, veio para Portugal. O problema é que o seu nome ficou registado no sistema de informação Schengen, partilhado por todos os Estados, pelo que o seu pedido de autorização foi recusado aqui também. O cidadão acabou por ser detido para ser deportado, levado e trazido do aeroporto, até ser finalmente libertado ao fim de dois meses, por se ter esgotado o prazo máximo. Note-se que o Direito Internacional permite a detenção de imigrantes pelo simples facto de estarem ilegais, sem terem cometido qualquer crime. Mas há a tendência de tratar estes casos como “tudo a eito”, levando a uma escala de causa-efeito automática deste tipo: a pessoa está sinalizada no SIS? Então não pode ter residência cá – logo tem de ser deportada – logo vai ser detida. É assim? Não. Isso é termos um Estado autómato, com as inflexibilidades dos totalitarismos. O sistema Schengen não obriga a confiar cegamente em todos os demais 26 Estados (alguns fortemente restritivos nesta matéria). O Direito exige, aliás, ponderar cuidadosamente os contornos do caso concreto, a vida familiar da pessoa… e a detenção é apenas em último caso. Já nem falo do “ping pong humano” feito com o cidadão, em idas e voltas para o aeroporto, devido as alegadas “falhas de comunicação entre autoridades”.

Por fim, os casos surreais: o da cidadã brasileira, que alegadamente vivia há vários anos em Portugal, com o marido e filhos, matriculados na escola. O seu título legal caducou e a AIMA já teria sido intimada pelo tribunal para decidir o reagrupamento familiar. No entanto, quando a família regressava de férias, a mãe não só foi impedida de reentrar no país, como foi detida, separada da família e metida num avião de regresso ao Brasil. Este é mais um dos exemplos que me envergonha, em que tudo falha. Pergunto como é possível, num Estado de Direito, considerar-se normal separar crianças pequenas de uma mãe que aqui reside, mas que está à espera da decisão administrativa – e só não a tem por falhanço dos serviços?

Surrealismos negros, estes. Processos obscuros, kafkianos, com os quais não nos podemos conformar. Portugal está aí, sim, a ficar um país de Kafka à Beira Mar.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora do Lisbon Public Law

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