Kara-Lis Coverdale
Kara-Lis CoverdaleFoto: Reinaldo Rodrigues

K-14 ou o lugar sagrado onde a música recomeça

Percebi que tinha lutado inconscientemente contra uma inevitabilidade estética.”
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Isto é controverso, mas, até há poucos dias, considerava que a música eletrónica se resumia a sons gerados por uma máquina que depois podiam ser manipulados para serem apresentados, independentemente do contexto. Nesta equação, na minha cabeça, eram excluídos os harmónicos dos instrumentos acústicos, as frequências que os tornam únicos. Por este motivo, construí muros à volta da música eletrónica, assumindo que não gostava dela, sem a entender. Não gostava dela, achava-a artificial e distante dos génios do barroco. Parte desta observação é verdadeira, no sentido em que há máquinas envolvidas no processo, mas há uma intencionalidade de quem manipula os sons, e, a limite, até há a especificidade da sala onde os sons são apresentados. Esta é a história do momento em que me sentei no lugar K-14, no Auditório Emílio Rui Vilar, na Culturgest, em Lisboa, e passei por um ritual alquímico de morte e ressurreição no que diz respeito à música eletrónica.

A responsável pela minha transformação é a compositora canadiana Kara-Lis Coverdale, que transporta consigo, intencionalmente, uma tradição ancestral de música da Estónia, tendo em conta a sua ascendência familiar (até porque todos nós, por não sermos árvores, temos raízes que não correspondem ao lugar onde estamos). O espetáculo dela prometia ser parcialmente de música eletrónica. O que sobrava, era música acústica, num piano. O palco não desapontava. A meio, virada de frente para o público, estava uma mesa relativamente pequena, com um computador e uns aparelhos que a ele estavam ligados. Do lado direito do palco, na perspetiva do público, estava um piano acústico, preto, que não se diluía no cenário simples e escuro do auditório.

A artista entra no palco, é aplaudida, acena humildemente, senta-se à mesa onde está o computador e, sem hesitar, abre a turbina da barragem que continha a música que tinha preparado. Invade-nos a todos com a música de dois discos: From Where You Came e A Series of Actions in a Sphere of Forever, ambos de 2025.

Porque tinha passado pelo privilégio de falar com a artista antes do concerto, sabia que, de acordo com o que me dissera, seria “música imprevisível” e “sagrada”. São dois termos que não associaria a música eletrónica, mas depois percebi.

Kara-Lis Coverdale, entre tantas coisas que faz com a música, é organista residente na igreja evangélica luterana Saint John, em Montreal, no Canadá. Ela admite a paixão que nutre por órgãos de tubos, que de forma evidente são instrumentos musicais que não deixam ninguém indiferente. Talvez seja esta a parte sagrada mais visível entre toda a música que faz.

Mas voltemos ao turbilhão. Na música eletrónica que levou à Culturgest, havia samples de órgãos de tubos, havia vozes inteligíveis, que se calhar não eram vozes de todo, havia sons que eu não sabia que existiam. Ela gesticulava. O corpo dela fazia parte da música, era tudo uma espécie de apelo coreográfico à audição. A luz difusa ajudava a que tudo se propagasse.

Há outra dimensão na música de Kara-Lis Coverdale para a qual ela me alertara: implica pensamento crítico e não é para ser ouvida com o “cérebro desligado”. Isto é válido também para a parte acústica do concerto.

A “música sagrada” continuou e eu mantive-me invadido por ela. Não percebi o princípio, nem o fim, e não sou capaz de cantarolar nenhuma melodia específica que ouvi naquela noite, mas ficaram as sensações. Era um ritual.

Não houve interrupção. Os sons eletrónicos, programados, continuaram autonomamente enquanto Kara-Lis Coverdale se levantava. Percorreu menos de dois metros até ao piano. Ficou estática em frente ao teclado enquanto o computador cessava muito devagar aquilo que lhe competia. Poucos minutos depois, o silêncio. A artista levantou uma das mãos, delicada, e deixou-a solenemente cair sobre o teclado, como uma folha de carvalho. A “música sagrada” continuava, mas sem mediação eletrónica. O turbilhão foi diferente, mas com todos os sentidos em alerta, para que a música não fosse feita de instantes, apesar de o ser.

Há um antes e um depois de tudo isto. Percebi que há lugar na minha vida para música eletrónica e percebi que tinha lutado inconscientemente contra uma inevitabilidade estética. Não gosto menos de música barroca por ter descoberto que há outros rituais musicais, mas escusava de ter passado tanto tempo a pôr arame farpado à volta daquilo que não me fazia sentido. No final, só me lembrei de um verso do poema Rhapsody on a Windy Night, de T. S. Eliot, sobre a inutilidade de alguns gestos, que, numa tradução livre do inglês é mais ou menos isto: “A meia-noite agita a memória como um louco agita um gerânio morto.”

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