Justiça. Duas presidências

Publicado a
Atualizado a

Logo na fase inicial dos seus exercícios, quer o actual quer o anterior Presidente da República, cada um a seu modo, mostraram interesse pela área da Justiça e manifestaram vontade de cooperar para favorecer a realização de reformas.

Há oito anos, o actual Presidente fez questão de ressuscitar um tema da década anterior - o “pacto da Justiça” - apoiando, e mesmo promovendo, uma espécie de “versão interprofissional” dessa fórmula (também já experimentada no passado, diga-se). Mas não obstante um contexto de intensa cooperação institucional com o Governo, o método não brilhou pelos resultados e, no final do primeiro mandato, o Presidente admitia que o “pacto” não tinha tido “ sequência política”: “Realmente o pacto foi muito pouco aplicado”, reconheceu então.

O seu antecessor foi - deve dizer-se - mais feliz. Não, simplesmente, pela circunstância de lhe ter cabido promulgar um conjunto de diplomas que imprimiram alterações significativas, mas por ser de elementar justiça registar o papel exercido - com aspectos pontuais discutíveis, mas efectivo - no processo que garantiu um “acordo político-parlamentar para a reforma da Justiça” entre o PS (então com maioria absoluta) e o PSD.

Foi um acordo que produziu resultados e que obteve, até, uma inusual taxa de cumprimento: em nove matérias sucessivamente submetidas à AR, só em relação à última se registaria falta de apoio por parte do PSD (facto, aliás, ocasionado por uma mudança na liderança).

Na totalidade ou com reduzidas alterações, um grande número de soluções introduzidas nesse período subsiste ainda - e isto pode dizer-se quer a respeito de diversas matérias abrangidas no que ficou conhecido pelo “pacto de Justiça” quer noutras, a ele alheias.

Destas últimas, são de lembrar, não só as respeitantes à desmaterialização, simplificação e eliminação de actos, como também intervenções na esfera da justiça criminal que perduraram (Lei-quadro da política criminal, organização da investigação criminal, código de execução de penas, base de dados de perfis de ADN…) e que obtiveram, em geral, promulgação presidencial pronta… e desacompanhada de comentários.

Refiro, de passagem, que só a Lei-quadro da política criminal (2006), que está em pleno vigor, prevê que, em cada biénio, a Assembleia da República proceda a duas audições do procurador-geral da República, uma obrigatória e outra facultativa: muitos, em 18 anos, incumpriram!

Mas a verdade é que foi desse “acordo político-parlamentar” PS-PSD, vulgo “pacto de Justiça”, que proveio, por exemplo, o actual regime do segredo de justiça e das escutas telefónicas (inalterados desde 2007) e também um conjunto de melhorias em matéria de prazos de inquérito, prisão preventiva e outros pontos relevantes em termos de protecção de direitos, liberdades e garantias (melhorias nalguns aspectos “mitigadas” em 2010). Algumas dessas soluções provocaram, ao tempo, intensa contestação em vários planos, mas resistiram bem - nomeadamente frente a múltiplas alegações de inconstitucionalidade, invariavelmente julgadas improcedentes. Não julgo que o prof. Cavaco Silva tenha tido razões para se arrepender de as ter promulgado.

Algumas dessas soluções têm, pois, um já bem longo período de aplicação. Conhecendo-se diversas - e bem sérias - patologias nalguns dos domínios indicados, justifica-se que sejam revisitadas (normas e práticas desenvolvidas). É frequente ouvir-se a queixa de que alteramos leis demasiado depressa. Mas aqui, em mais de década e meia, nem um retoque se deu em institutos críticos, onde se têm verificado problemas que não podem ser erradicados recorrendo à fórmula “à Justiça o que é da Justiça…”.

Foi o próprio autor do projecto do Código de Processo Penal vigente (aprovado, originariamente, é bom lembrá-lo, com o prof. Cavaco Silva em S. Bento ) que veio dizer que alterações legislativas regulares de códigos fundamentais tendentes a explicitar, actualizar e corrigir instrumentos ou soluções cuja disfuncionalidade se verifique que, na prática, eram “em princípio, salutares e bem-vindas”.

Pelo meu lado, nunca imaginei que tantas das normas introduzidas naqueles anos fossem mantidas intactas durante tantos anos (e daí, também, a monitorização logo desencadeada, centrada no comportamento das novidades no terreno).

No ponto em que nos encontramos, “salutar e bem-vindo” seria, aqui, muito em especial, um empenhamento do actual Presidente que favorecesse resultados palpáveis em tempo útil. Doutro modo, o contraste entre os períodos das duas presidências será, neste campo, inexorável.

Aproxima-se o termo do segundo mandato do prof. Marcelo Rebelo de Sousa. Pouco mais há do que uma sessão legislativa pela frente. Era bom que um Presidente que no tocante a discurso pós-colonial foi um pouco para lá do que esperávamos, em matéria de Justiça se aproximasse um pouco mais do que seria natural esperar dum professor de Direito.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt