Israel perdeu o direito de ser chamado uma democracia?

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No dia seguinte ao reconhecimento do Estado da Palestina por Portugal e mais um conjunto de países, importa considerar o muito que Israel mudou.

Há décadas afirmamos a mesma certeza: “as democracias não cometem genocídio”. A ideia assenta na existência de direitos fundamentais, imprensa livre, tribunais independentes e escrutínio cívico que deveriam impedir a adopção de políticas de extermínio.

A 16 de Setembro de 2025, a Comissão de Inquérito Independente das Nações Unidas para o Território Palestiniano Ocupado concluiu que autoridades e forças de segurança israelitas “cometeram e continuam a cometer” genocídio contra palestinianos na Faixa de Gaza, tendo identificado quatro dos cinco actos tipificados na Convenção de 1948 (matar; causar danos graves; impor condições de vida destrutivas; impedir nascimentos) e apontado incitamento ao genocídio por altos dirigentes israelitas. É, até à data, o juízo mais sério emanado de um órgão ligado à ONU, ainda que a Comissão seja independente e não represente a posição oficial das Nações Unidas.

No plano judicial, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que julga a responsabilidade do Estado, considerou a 26 de Janeiro de 2024, plausível que actos em Gaza pudessem violar a Convenção do Genocídio e impôs medidas provisórias a Israel, nomeadamente prevenir actos tipificados como genocídio, punir o incitamento e permitir ajuda humanitária, entre outras. E em 28 de Março e 24 de Maio de 2024, o TIJ reforçou essas medidas face ao agravamento da situação, incluindo ordens relativas ao acesso de ajuda e às operações em Rafah.

Já o Tribunal Penal Internacional (TPI/ICC) julga indivíduos e em 21 de Novembro de 2024, o TPI emitiu mandados de detenção contra o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu e o então Ministro da Defesa Yoav Gallant por crimes de guerra (incluindo fome como método de guerra) e crimes contra a humanidade (assassinato, perseguição e outros actos desumanos) mas não por crimes ligados a “genocídio”.

O que é, então, seguro afirmar? Primeiro, há uma conclusão de uma comissão mandatada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU de que está a ocorrer genocídio em Gaza, incluindo

evidência de actos e de intenção inferida a partir de declarações e padrões de conduta. Segundo, há ordens vinculativas do TIJ para prevenir actos potencialmente genocidas e assegurar ajuda humanitária, reconhecendo a probabilidade da violação da Convenção. Terceiro, há mandados do TPI contra líderes israelitas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Face a tudo o que foi dito pela Comissão Independente da ONU e pelos Tribunais Internacionais, poderá Israel ainda ser considerada uma democracia? Democracia significa respeito pelos direitos individuais e colectivos, pelo Estado de Direito, pela separação de poderes e pela realização de eleições livres e justas. Um país sob suspeita de genocídio pelas Nações Unidas e cujos líderes têm mandados de captura internacionais dificilmente cumpre esse padrão.

O caso israelita mostra que a democracia não é um sistema imutável: é um processo que pode degradar-se até perder o seu conteúdo. Uma democracia que cruza a linha vermelha do genocídio é como um edifício que mantém a fachada intacta, mas cujo interior já ruiu. Parece o que foi, mas deixou de o ser.

Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL

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