A recente revelação de que o então Juiz de Instrução Criminal (JIC) Ivo Rosa (atualmente, Juiz Desembargador) foi alvo de uma investigação de três anos pelo Ministério Público (MP), obriga-nos a uma profunda reflexão sobre a arquitetura e a separação de poderes num Estado de Direito democrático. A questão central não reside na premissa de que um juiz ser ininvestigável – pois ninguém está acima da lei –, mas sim nas circunstâncias, na metodologia e, crucialmente, na perceção pública dos falsos equilíbrios que este episódio expõe. Na verdade, é impossível dissociar a análise deste caso da sua coexistência cronológica com a decisão de não pronúncia de José Sócrates na Operação Marquês. A não pronúncia pela generalidade dos crimes pelos quais o ex-primeiro ministro vinha acusado, representou um dos momentos mais marcantes da justiça portuguesa na última década. Diga-se que, de seguida, a Relação de Lisboa repristinou quase todos esses crimes que o JIC arquivou. A subsequente investigação ao JIC Ivo Rosa, ainda que legalmente fundamentada, gera uma névoa de suspeição sobre o momento e o real motivo da investigação que acabou arquivada por falta de fundamento. A devassa da vida de um magistrado é, por si só, corrosiva para a independência e autoridade judiciárias, um pilar fundamental da separação de poderes em qualquer democracia. Um Juiz de Instrução Criminal funciona como o “juiz das garantias”, cuja principal função é fiscalizar a legalidade da atuação processual do Ministério Público durante a fase de inquérito. Quando o órgão fiscalizado (MP) investiga o seu fiscalizador (JIC), a estrutura de controlo inverte-se perigosamente. Levanta-se, inevitavelmente, a questão clássica: quis custodiet ipsos custodes? Quem fiscaliza o investigador? Num Estado de Direito, a resposta deveria ser clara e assente em mecanismos de checks and balances transparentes, credíveis e eficazes. As carreiras dos atuais Presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), Juiz Conselheiro João Cura Mariano e do Procurador-Geral da República (PGR), Amadeu Ribeiro Guerra, legitimam, à partida, a confiança dos cidadãos e dos profissionais do foro na justiça dos Tribunais Superiores e na PGR. Contudo, a situação em apreço, despoletada por uma denúncia anónima, exige, no mínimo, uma explicação formal e detalhada da PGR ao CSM, como forma de salvaguarda do regular funcionamento e da cooperação entre instituições do sistema de justiça. Só indícios sérios, sólidos e credíveis poderiam justificar uma investigação tão longa e intrusiva. Nunca, baseada, numa denúncia anónima e vaga. A opacidade que rodeia a denúncia e o inquérito, que culminou no seu arquivamento, adensa as preocupações de quem é atento e quer uma justiça respeitada, respeitável, credível e independente. Foram, inequivocamente, pisadas linhas vermelhas que fazem soar os alarmes. A subordinação de todas as instituições à Constituição e à Lei é a garantia última da legalidade do seu funcionamento e do respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos. Quando dúvidas se levantam sobre a legitimidade e oportunidade de investigar um Juiz das Liberdades, a confiança dos profissionais do foro e dos utentes da justiça é fortemente abalada. Este caso não é sobre o então Juiz de Instrução Ivo Rosa, mas sobre a prevalência e a subordinação à Lei e à Constituição por parte de quem investiga e de garantir a independência de quem julga.Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados