Ihor, ou o encobrimento que mata

Num momento em que se discute como o encobrimento sistemático de abuso na Igreja Católica propiciou e fomentou mais abuso, o segundo ato do processo criminal relativo a Ihor Homeniuk demonstra como o encobrimento não se limita a esconder crimes: mata.

Ao ler a segunda acusação do caso Ihor, exarada na passada semana pelo procurador Óscar Ferreira, do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, deparei-me com a evidência de que, três anos após a morte do cidadão ucraniano, ocorrida a 12 de março de 2020 no centro de detenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa, ainda encontro novas provas do encobrimento urdido no seio daquela polícia.

A cada novo testemunho prestado por membros do SEF e de outras pessoas ao seu serviço, como é o caso dos vigilantes da empresa de segurança privada Prestibel, contratada pelo SEF para "gerir" o centro de detenção onde eram "instalados" os estrangeiros não admitidos em território nacional, descubro mais mentiras.

Um exemplo disso são as declarações de dois inspetores, Ricardo Girante e Rui Marques, que na inquirição mais recente pela Polícia Judiciária admitem que Ihor tinha vários hematomas no corpo - quando em tribunal, no julgamento, que decorreu em 2021, dos três colegas acusados do homicídio de Ihor (e entretanto condenados a nove anos de prisão por ofensas à integridade física graves qualificadas e agravadas pelo resultado morte), não referiram esses sinais de violência. A evidência de que mentiram - ou no testemunho ou em tribunal - não lhes acarretou, porém, qualquer consequência penal. Suspeitos de falsificação de documento (um fez o auto do óbito de Ihor, no qual nada era referido quanto a sinais de violência, e o outro assinou-o), Girante e Marques viram o Ministério Público desistir dessa suspeita.

Outro caso é o das duas vigilantes da Prestibel que, também no referido julgamento, admitiram ter assistido os seus colegas vigilantes (a quem nesta nova acusação é imputado o crime de sequestro e o exercício ilícito de segurança privada), quando estes amarraram Ihor com fita adesiva. À PJ, na inquirição relativa ao novo processo, garantiram que a fita adesiva que andaram, a meio da noite de 11 para 12 de março, a transportar pelos corredores do centro de detenção, entrando com ela na mão na divisão onde estavam Ihor e os ditos colegas, servira para "fechar envelopes".

A cadeia de cumplicidades, omissões e ações criminosas que conduziu à morte de um ser humano, e que para além dela continuou, no intuito de encobrir as suas circunstâncias e consequentes responsabilidades, não cessa de me atormentar - como o facto de para muitos dos que nela participaram não haver punição.

É certo que o Ministério Público fez em relação à morte de Ihor algo que nunca até hoje sucedera. Acusou de homicídio negligente por omissão um responsável hierárquico policial - o inspetor coordenador João Agostinho, que além de ter as funções correspondentes às de um "chefe de esquadra", era o responsável informal do centro de detenção (a inspetora que coordenava esse centro no aeroporto de Lisboa demitira-se há meses e Agostinho desempenhava interinamente, sem nomeação formal, essa função) -, e de denegação de justiça e prevaricação o então diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques.

Henriques fora já demitido do seu posto depois de a 29 de março de 2020 se ter sabido publicamente da morte de Ihor e das suspeitas de homicídio; viria depois a ser demitido da função pública, já em 2022, por proposta da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI, a entidade que fiscaliza as polícias sob tutela do ministério da Administração Interna). É nele que são concentradas todas as responsabilidades do encobrimento no caso; Cristina Gatões, a diretora-nacional do SEF quando a morte ocorreu, foi não só ilibada de infrações disciplinares pela IGAI como agora também pelo MP.

A possibilidade de a acusar pelos mesmos crimes de que foi acusado Henriques soçobrou, explica o despacho de acusação assinado por Óscar Ferreira, pela mesma razão pela qual a IGAI não a quis punir disciplinarmente: teria sido enganada por Sérgio Henriques. Este teria escondido à sua superior hierárquica direta que Ihor ficou cerca de oito horas algemado de mãos atrás das costas, deitado no chão - uma situação que qualquer inspetor do SEF tinha a obrigação de saber que podia conduzir à morte por asfixia.

Não é possível, é claro, saber o que Henriques disse ou não disse a Gatões no dia da morte de Ihor, depois de se deslocar ao centro de detenção, de ver o corpo (e portanto os sinais de violência que este ostentava), de falar com os inspetores que tinham visto o homem morrer e de "ajudar" os vigilantes a escrever o respetivo relatório.

Também não sabemos o que Henriques disse a Gatões nos dias seguintes, quando falou com todos os seus subordinados que tinham contactado com Ihor - incluindo os três que foram entretanto condenados por o agredir e o terem algemado, deixando-o assim sem mais quererem saber dele - e lhes pediu que lhe enviassem os seus "relatos" escritos. Os quais serviram para completar o "relatório de ocorrência" referente ao cidadão ucraniano e constituiu a narrativa "oficial" do SEF sobre o tempo em que aquele esteve sob custódia - narrativa na qual não são referidos nem sinais de violência, nem o manietar com fita adesiva, nem o ter estado algemado durante oito horas, e que foi supervisionada por Sérgio Henriques com o único objetivo, concluiu a IGAI, "de encobrir a etiologia criminosa da morte de Ihor Homeniuk e, dessa forma, proteger-se e a colegas de trabalho, (...) omitindo, deliberadamente, informações essenciais e relevantes à descoberta da verdade (...)", tentando, "com uma blindagem corporativista, evitar a instauração de procedimentos criminais e disciplinares contra os autores do crime, sobrepondo-se ao interesse público, nomeadamente, de aplicação da justiça."

Não, não sabemos o que foi comunicado pelo então diretor de Fronteiras de Lisboa à diretora nacional do SEF. Mas duas coisas se sabem: que, segundo a própria declarou à PJ, Gatões pediu logo no dia 12 de março, quinta-feira, o relatório de ocorrência, e só viria a poder lê-lo a 16 de março, segunda-feira - tinha pois de saber que, ao contrário do que era norma, o relatório seria preenchido já tendo em vista o que acontecera. E que depois de o ler, considerando, segundo disse à PJ, que não havia nele "qualquer incongruência", decidiu então cumprir a obrigação legal de comunicar o óbito à IGAI - algo que deveria ter sido feito logo que soube dele.

É isso mesmo que prevê o despacho n.º 5863/2015, de 2 de junho: "Em caso de morte da pessoa detida deverá o comandante do estabelecimento policial comunicar imediatamente o facto ao Ministério Público, à Inspeção-Geral da Administração Interna e ao familiar mais próximo conhecido."

Foi com base nesta obrigação que o procurador Óscar Ferreira pôs a hipótese de acusar Gatões dos mesmos crimes que imputou a Sérgio Henriques - mas decidiu não o fazer porque considerou que a então diretora nacional não podia querer esconder da IGAI algo que desconhecia. E mais: que a expressão "de imediato", ou "imediatamente", deve ser interpretada neste caso como "logo que possível" - e logo que possível podia ser dias depois. E ainda porque a IGAI, quando alertada para o facto de um detido ter morrido sob custódia do SEF, não abriu qualquer inquérito - o que, conclui o procurador, significa que a comunicação ter sido efetuada dias depois da morte não fez qualquer diferença em termos de apuramento de responsabilidades.

Admito que estas conclusões possam fazer sentido do ponto de vista jurídico-legal - não sou jurista. Mas custa-me a perceber que uma diretora nacional de uma polícia - ainda por cima com competência de investigação criminal como o SEF - que admitiu na inquirição da IGAI saber que o corpo de Ihor apresentava sinais de violência e que foi por esse motivo que quis tentar perceber, antes de comunicar a morte, se houvera maus-tratos ou "tortura" (usou essa palavra) - possa ter lido um relatório sobre um detido que morrera sob a sua responsabilidade sem ter reparado que nesse relatório se mencionava a altura em que foi algemado mas não havia qualquer referência à sua desalgemagem.

Como me custa a perceber como é que a mesma diretora nacional de polícia pôde garantir só ter sabido pelos media, a 29 de março, que a PJ estava a investigar a morte de Ihor como homicídio se a respetiva brigada de homicídios (alertada logo a 14 de março por uma denúncia anónima e pelo alerta do médico que fez a autópsia) contactara Sérgio Henriques logo a 16 de março e a direção regional de Lisboa e Vale do Tejo do SEF no dia seguinte. É crível que diretores do SEF que reportavam diretamente a Gatões soubessem que a PJ estava a investigar a morte de Ihor e esta não fosse informada?

Parece completamente impossível que tal tivesse acontecido - por mais que Gatões garanta não ter visto o email que a 19 de março foi endereçado por Henriques à PJ com conhecimento dela.

Como ignorou os alertas do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, sediado na Provedoria de Justiça, que considerava o centro de detenção do aeroporto de Lisboa um local de risco, como deixou sem coordenador direto o mesmo centro de detenção, Cristina Gatões, ao ser informada de que morrera um homem sob custódia, quis saber o menos possível, ver o menos possível, ouvir o menos possível. Foi esse mesmo laxismo, esse caldo de cultura, que criou as condições para que Ihor passasse horas a ser agredido e torturado à vista de dezenas de pessoas, a maioria delas polícias. O encobrimento, a denegação de justiça e a prevaricação eram, como se comprovou, endémicos no SEF bem antes de matarem Ihor.

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