Humilhados e ofendidos

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A humilhação é um gesto político cheio de significado e de mensagens: desde os reis vencidos, que desfilavam acorrentados pelas ruas da imperial Roma, passando por gestos tardios um pouco mais subtis, mas não menos espetaculares, como Bismarck vir em 1870 proclamar o Reich alemão no Palácio de Versalhes ou o destino daquela histórica carruagem de caminho de ferro parada em Compiègne, que acolheu a assinatura do armistício de 1918, com a derrota dos alemães, e vinte e dois anos depois, em 1940, assistiu à assinatura de um novo armistício que marcava, agora, a derrota dos franceses. Não terá sido má ideia, embora tenha vindo dos nazis, queimar essa controversa carruagem. Não julgo que dela nos viesse uma boa inspiração.

A humilhação menos subtil é a que é feita por palavras diretas e brutais: a famosa e mediática primeira conversa de Trump com Zelensky é um exemplo de humilhação verbal pública, sem eufemismos, que é rara na diplomacia.

As mais ameaçadoras notas diplomáticas, incluindo as declarações de guerra, assumem um estilo neutro, raramente atingindo a indignação, mas suficientemente forte e assertivo para mostrar que não há recuo possível. A nota do governo inglês de janeiro de 1890, conhecida como Ultimato, exigia de Portugal uma retirada imediata dos territórios africanos que a Inglaterra pretendia ocupar, com a única alternativa da guerra entre os nossos dois países. Mas o final da nota é um delicioso eufemismo, em que apenas se diz que, na falta de uma resposta satisfatória às exigências britânicas, o embaixador inglês abandonaria imediatamente Lisboa, com toda a sua legação e a fragata inglesa Enchantress aguardava instruções no porto de Vigo. Instruções para vir retirar de Lisboa os diplomatas ingleses e apresentar a declaração de guerra, subentende-se... De qualquer modo, a nota do Ultimato nunca perdia a compostura.

A humilhação através das taxas alfandegárias, a que agora todos chamamos tarifas, é a forma mais moderna e interessante de humilhação política. Tem um fundamento na soberania económica, mas mais do que isso, reflete agora um estado de espírito, uma zanga, uma contrariedade, que se convertem numa forma igualmente inequívoca de pressão. O proteccionismo deixa de ser um movimento de defesa da economia nacional, passando a ser um instrumento de ataque, uma arma de agressão, uma forma de guerra por outros meios, com que não sonhou Clausewitz.

A humilhação é calculada, medida, graduada: o Brasil será castigado com as maiores tarifas enquanto continuar a incomodar a figura heróica de Bolsonaro; mas com a China ou o México tudo vai sendo adiado, suspenso e sujeito a mais demoradas negociações, enquanto a União Europeia teve apenas direito a um “pegar ou largar”, que foi prontamente aceite.

As relações de força no mundo atual têm pouco que ver com o que aprendemos na História e refletimos na diplomacia. Napoleão teve um dia, em público, um acesso de ira contra Talleyrand, a quem chamou “uma merda dentro de uma meia de seda”. Depois de Napoleão ter saído, Talleyrand comentou: “Que pena que um homem tão poderoso seja tão mal educado”.

Penso que todos poderíamos hoje partilhar esta reflexão de Talleyrand, agora a propósito de outro homem poderoso.

Diplomata e escritor

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