Forças Armadas e a “irrelevância” fatal

É penoso que o nosso Conceito Estratégico de Defesa Nacional seja ainda o de 2013, no qual, entre outras pérolas, apresenta a Rússia como “parceiro estratégico”
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É dramático quando áreas de soberania do Estado acumulam problemas que se arrastam e agravam no tempo. Acontece na justiça, na segurança e na defesa e em comum têm semelhantes faltas de investimento ao longo dos anos e, principalmente, nos dois últimos setores, dificuldade em recrutar e reter recursos humanos.

Mais grave nas Forças Armadas (FFAA) quando esse problema já foi diagnosticado e antecipado há vários anos. Aqui no DN fizemos manchete a 22 de fevereiro de 2020 com uma alarmante carta de um conjunto de oficiais-generais do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI) endereçada ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na qual advertiam para a situação de “pré-falência” das FFAA. “Processo de desconstrução”, “dificuldades inéditas”, “mínimos” de efetivo “nunca verificados”, “situação em geral grave, mas no caso do Exército de emergência institucional”, “dificuldades de sustentação e manutenção” - foram alguns dos factos elencados.

Praticamente cinco anos depois, eis que de novo vem o GREI recuperar o diagnóstico que, não só se mantém atual, como, perante a atual conjuntura internacional e o desafio que se impõe para a defesa europeia, as lacunas se tornam ainda mais evidentes e expõem toda a nossa fragilidade.

É penoso que o nosso Conceito Estratégico de Defesa Nacional seja ainda o de 2013, no qual, entre outras pérolas, apresenta a Rússia como “parceiro estratégico”. O ministro Nuno Melo já disse que o novo documento, com base na proposta que tinha saído de um longo trabalho da ‘comissão de sábios’ presidida por Nuno Severiano Teixeira, seguirá em breve para o Parlamento.

Entretanto, o mundo voltou a mudar com Donald Trump de novo a liderar os Estados Unidos e, sem surpresas, a provocar uma tempestade nas relações transatlânticas. Há quem veja aqui uma oportunidade para a Europa se fortalecer, investir realmente na sua indústria de defesa. Porém, não é preciso ser muito cético para a desconfiança dominar a perceção.

O General Valença Pinto, antigo Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, pediu, num artigo publicado aqui no DN, um “toque de alvorada”, o qual, segundo o cerimonial militar, se segue ao toque de finados. Para tal, sublinhou “vai ser precisa muita vontade política, muita determinação e lideranças que realmente o sejam”.

Lendo o novo documento do GREI deparamo-nos quase com uma sentença de morte, que só um milagre pode travar. O desinvestimento, as políticas públicas pensadas no imediato e não a longo prazo, a falta de conhecimento da cultura militar, o ostracismo a que dirigentes políticos condenam os militares, como se não constituíssem uma das mais relevantes, organizadas e disciplinadas forças de defesa de todos nós (só lembrar o papel que tiveram durante a pandemia da Covid-19), têm sido a prática.

É por tudo isso que quando temos oficiais superiores a dizer que “o funcionamento das FFAA encontra-se dependente de um número reduzido de militares que asseguram a operação e a sustentação do Serviço de Forças, em condições de crescente carga laboral devida à rarefação de efetivos” e que “casos existem até, em que se verificam situações que se aproximam perigosamente de patamares de risco pessoal e material inaceitáveis”, sentimos que começa a faltar um sobressalto cívico.

Segundo o GREI, a defesa nacional está “perante o pior cenário possível dos últimos 50 anos” e que caso não seja feita uma “reforma profunda” a “irrelevância militar das FFAA é uma certeza matemática”. E será certamente fatal para todos nós.

Diretora-adjunta do Diário de Notícias

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