A primeira vez que me lembro de ter refletido seriamente sobre a proibição de vestuário ou simbologia vestimentar religiosa foi há mais de 20 anos, quando me dei conta da existência, em França, de uma comissão, nomeada pelo então presidente Jacques Chirac, para examinar a questão. Um dos motivos para a reflexão, pelo que percebi, foi constatar-se que as meninas muçulmanas estavam a ser socialmente pressionadas a usar hijab, o lenço que cobre o cabelo, sofrendo retaliações mais ou menos graves (houve notícias à época de ataques selváticos a adolescentes que não o envergavam). Estavam, assim, em causa a liberdade individual e o direito de crianças e jovens ao livre desenvolvimento da respetiva personalidade.Li com muito interesse o relatório da dita comissão (a comissão Stasi), com cujas recomendações concordei: que passasse a ser interdito, nas escolas públicas francesas (excluindo as universidades, por serem frequentadas por adultos), o uso de sinais ostensivos de pertença a uma religião — hijab, mas também a quipá judaica, crucifixos não discretos, etc — e que nos serviços públicos os funcionários que contactavam com o público mantivessem uma aparência laica, sem uso de qualquer símbolo ou vestuário religioso. A comissão recomendava também, no seu desígnio de certificar a liberdade religiosa, que os crentes de todas as religiões pudessem, em pé de igualdade com os cristãos/católicos, pedir dispensa para celebrar festas da sua crença e que nas cantinas públicas existissem pratos atendendo a restrições alimentares baseadas na religião. E, claro, a interdição de proselitismo religioso na relação do Estado com os cidadãos incluía em França os próprios edifícios públicos, que se obrigavam a estar despidos de símbolos religiosos.Houve protestos, mas a lei que proíbe o uso de vestuário “religioso” nas escolas públicas francesas entrou (e permanece) em vigor. Seis anos depois, então sob a égide do presidente Sarkozy, o governo decidiu avançar para uma proibição geral, em todo o espaço público, do uso de vestuário ocultando o rosto. O dito diploma, que passou no parlamento de forma quase unânime, seria objeto de queixa (por parte de uma mulher muçulmana) ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), o qual considerou que de entre todas as razões apresentadas pelo país — “segurança pública”; “respeito pelo conjunto de valores básico de uma sociedade democrática”, nomeadamente “igualdade de género”; “respeito pela dignidade humana” — só uma era atendível. A saber, “o respeito pelos requisitos mínimos da vida em sociedade”, que inclui “viver em conjunto” — um viver em conjunto no qual a visualização da face de cada um pelos outros desempenha, segundo o acórdão, um papel fundamental, integrando assim os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Convenção.Esta decisão mereceu o dissenso de dois juízes, os quais argumentaram que se estavam a sacrificar os direitos individuais consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos em nome de princípios abstratos.“Dificilmente se pode defender que um indivíduo tem o direito de entrar em contacto com outras pessoas, em lugares públicos, contra a respetiva vontade. A existir esse direito, teria de existir a correspondente obrigação. O que seria incompatível com o espírito da Convenção”, escrevem no seu voto de vencidos. “Enquanto que a comunicação é claramente essencial para a vida em sociedade, o direito ao respeito pela vida privada inclui o direito a não comunicar e não entrar em contacto com outros em lugares públicos — o direito a ser outsider.”Acresce, lê-se ainda na opinião destes magistrados, que “as pessoas podem socializar sem necessariamente olhar os outros nos olhos”, e “se a cara de cada um desempenha um papel muito importante na interação humana, essa ideia não pode conduzir à conclusão de que a interação humana é impossível se a cara toda não estiver à mostra”. Como, prosseguem, comprovam exemplos perfeitamente enraizados na cultura europeia, como o esqui e o motociclismo, em que as caras estão ocultas, e o uso de máscaras no Carnaval. Ninguém, concluem, “poderia dizer que nessas situações (excepcionadas na lei francesa), os requisitos mínimos da vida em sociedade não são respeitados.”Poder-se-ia, aos exemplos citados neste dissenso, acrescentar o uso de máscaras cirúrgicas, imposto em todo o mundo nos confinamentos Covid (e para as quais França teve de criar mais uma exceção à lei em análise). Máscaras que são, diga-se, um “truque” comummente utilizado pelas mulheres muçulmanas — quer nos (vários) países em que existem leis como a francesa quer naqueles, como o nosso, onde a lei (ainda) não existe — para cobrir o rosto sem terem de recorrer a um niqab (o traje que cobre todo o corpo e deixa apenas os olhos à mostra). Isto para chegar onde, pergunta quem me lê, que há-de estar por esta altura a pensar “mas esta nunca mais diz o que pensa”? Pois bem, isto para chegar ao âmago jurídico-legal, ou seja filosófico, da questão: que fundamento pode ser invocado, que argumentos podem ser usados, no quadro legal de um Estado de direito democrático obrigado ao respeito não só da respetiva Constituição como da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, para proibir uma peça de vestuário (ou seja o que for) que cobre o rosto?Porque não chega, diz-nos o TEDH, alegar que o niqab e a burqa (o traje islâmico que tapa tudo, até os olhos) são símbolos da opressão das mulheres (sem dúvida sendo-o) e da sua representação como seres-para-o-homem, objetos antes de mais sexuais cuja existência lhes é subordinada em tudo, a ponto de não poderem ser eles vistas por tal constituir um “desafio” à respetiva capacidade de controlo. Não chega dizer que quando alguém traz um niqab ou uma burqa não sabemos quem ali está e o que traz consigo (porque obviamente há muito mais tipos de vestuário que permitem esconder armas, explosivos, o que for, e nos casos em que a identificação é obrigatória por motivos de segurança, como num aeroporto, banco, etc, é obrigatória e não há exceções). Não chega dizer que uma peça de roupa pensada para fazer desaparecer, invisibilizando-as e retirando-lhes toda a individualidade, as mulheres do espaço público é simbolicamente um atentado insuportável à dignidade humana (que é).Não: temos de afirmar, porque é essa a única razão que o TEDH aceitou, que nenhum de nós tem o direito de não se dar a ver, que nenhum de nós pode viver em sociedade sem mostrar o rosto, porque é um direito dos outros vê-lo.Não será pois apenas, como apontam, em pareceres enviados ao parlamento, a Ordem dos Advogados e o Conselho Superior do Ministério Público (o MP, aquele órgão que teria de aplicar a lei), por motivos de óbvia discriminação religiosa, e por isso inconstitucional, ou por ausência de “densificação das normas” — por estar feito com os pés, em suma — que o projeto de lei do Chega, na passada semana aprovado no parlamento com os votos do PSD, IL e CDS-PP, deve envergonhar quem o aprovou. É porque, malgrado invocar a Constituição e o TEDH, quem, cego de ódio, de oportunismo e populismo, o fez e viabilizou, não percebeu nem o que impõem a Constituição e o TEDH nem o que está em causa — que é, basicamente, estabelecer, como deixa claro o dissenso dos dois juízes de Estrasburgo, que os indivíduos não têm o direito ao anonimato no espaço público (o que, a ser levado à letra, teria de determinar o fim do anonimato em geral e na internet em particular). É, na verdade, de um peculiar e paradoxal totalitarismo que se trata: o de, a pretexto de salvar as mulheres da imposição da invisibilidade, determinar que não têm direito (ninguém tem) a não ser vistas/identificadas.Por fim, porque é importante dizê-lo, como feminista, execro — já o escrevi tantas vezes — os trajes que visam apagar as mulheres do espaço público. Como execro qualquer ditame, religioso ou outro, que se fundamente na noção, consagrando-a, de que as mulheres são menos que os homens — sendo um exemplo disso a interdição, na Igreja Católica, de acesso ao sacerdócio. É, por mim, tudo para debater e questionar. Mas a sério, porque é mesmo muito sério. Nota: Já após a conclusão deste texto, tomei conhecimento do parecer da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas sobre o projeto de lei aprovado no parlamento português, o qual, tal como o parecer da Ordem dos Advogados e o do Conselho Superior de Magistratura, que subscreve, se pronuncia pela inconstitucionalidade do diploma. Manifestando "repúdio por todo o teor do diploma", o parecer acusa: "Os fundamentos invocados na Exposição de Motivos (...) mostram-se ditados por um intuito persecutório, securitário e ofensivo da liberdade individual, o que no seu conjunto, os qualifica como ilustrativos de um discurso de ódio, xenofóbico e atentatório da dignidade das e dos seus destinatárias/os, os quais só gerarão mais violência não apenas sobre as mulheres, mas igualmente sobre as meninas e raparigas"..A verdade velada.Proibição de burcas em espaço público. O tipo de véu, as multas e as exceções no projeto de lei do Chega que o Parlamento aprovou.Vera Jardim: "Crucifixos não deviam estar nas escolas. Devem ser retirados"