Falar de poesia hoje?
A atualidade rodeia estas minhas palavras com o alto vibrar dos resultados eleitorais, nas suas vitórias e derrotas, e com a terrível música de fundo da pandemia, nos seus lutos e alarmes. Parecerá então falar hoje de poesia atitude semelhante àqueles jogadores de xadrez do poema de Ricardo Reis que ficam suspensos "de marfim peão mais avançado/ pronto a comprar a torre" ainda que "caiam cidades, sofram povos, cesse/ a liberdade e a vida"?
Será assim para quem a poesia signifique um mero entretenimento e a cultura uma forma mais de ocupação de tempos livres. Mas, parafraseando a famosa frase de Churchill, se lutamos pela nossa vida (contra a pandemia) e pela nossa liberdade (ao irmos votar), fazemo-lo não só para proteger a própria sobrevivência, mas também para defendermos essa manifestação essencial da nossa humanidade que é podermos partilhar a cultura, a arte e a poesia. Ou, como melhor disse Sophia, "A obra de arte vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser".
A poesia vem na verdade ao encontro de todos os momentos da nossa vida. Ela pode sempre constituir, como dizia Matthew Arnold, "a criticism of life". E, a esse propósito, como não evocar, a propósito dos discursos de um dos candidatos às nossas eleições presidenciais, o inesquecível poema que Sophia dedicou ao ditador Salazar?
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.
É verdade que a história aqui uma vez mais se repetiu como farsa e o mais que o nosso recente candidato a ditador pode merecer agora como poesia serão estes versos de Fernando Pessoa:
Coitadinho do tiraninho
Não bebe vinho
Nem sequer sozinho...
Mas não deixemos afrouxar a nossa vigilância e recordemos como alerta um poema de Jorge de Sena escrito em 1974, na alvorada da nossa liberdade:
Liberdade, liberdade,
Tem cuidado que te matam
Que muito povo se assuste
Julgando que tu és culpada
Eis o terrível embuste
Por qualquer preço que custe
Com que te armam a cilada.
Votámos nestes tempos de pandemia contra o medo e a solidão, contra a doença e a incerteza, contra a infeção e o ódio. Esta forte afirmação da nossa liberdade foi uma afirmação da vida contra a morte, da liberdade contra o destino, da condição humana contra a mera sobrevivência.
Queremos viver, mas queremos viver livres e iguais. Fraternos também, como no lema da Revolução Francesa que a ironia da história fez que seja hoje um Papa a recordar-nos. E a afirmação da vida é sempre manifestação da alegria, essa alegria que, como Espinosa explica, aumenta a nossa potência de agir e nos faz passar de uma perfeição menor a uma perfeição maior, sendo assim para nós, como diz Schiller na sua Ode à Alegria que Beethoven imortalizou, "o mais belo presente dos deuses".
Em 1977 em Luanda, no meu primeiro posto diplomático, tive uma cozinheira que todos os dias vinha do musseque para minha casa na Marginal, gorda e sorridente como a Irene de Manuel Bandeira. Ela conversava muito comigo e disse-me um dia: "É verdade que com os portugueses aqui em Luanda até vivíamos melhor. Mas eu prefiro ter como presidente alguém da minha gente."
Que tenhamos nós sempre como presidente alguém da nossa gente, alguém para quem não existam "portugueses de bem" e outros portugueses a discriminar, confinar ou expulsar, e que isso seja hoje a razão da nossa alegria, tenhamos ou não votado no candidato vencedor!
Diplomata e escritor