Beethoven
Apostou que este iria ser o ano de todos os recordes. "Mais concertos, mais músicos, mais bilhetes vendidos, mais crianças no público. O ano em que tudo correria melhor e em que a Festa teria mais sucesso. Só falta cumprir este último, mas ainda temos dois dias pela frente." Passam pouco mais de três horas da abertura das portas e Miguel Coelho já não consegue esconder o entusiasmo. O director do Centro de Espectáculos do Centro Cultural de Belém (CCB) faz o balanço provisório aos primeiros momentos da sexta edição da Festa da Música com o sorriso mal escondido de quem é credor de uma aposta ganha 59 mil bilhetes vendidos - mais 11 mil que no total dos três dias de 2004 - e nove mil por vender.
Um resultado "muito superior às expectativas", garante, embora os números iniciais da Festa denunciem que a expectativa era ambiciosa. No ano em que a Folle Journée se estreia em Tóquio com um cardápio seguro feito à base da música de Beethoven e de um punhado de seus contemporâneos, Lisboa - primeira extensão do evento nascido há dez anos em Nantes - programou 158 concertos para 57 horas de música distribuídas por sete salas e aumentou a oferta em 12 mil bilhetes.
Os números. E o fascínio pelos números da Festa é irrecusável. Os músicos são mais de mil - somando 508 nomes estrangeiros a 525 portugueses -, mas apenas uma parcela do exército que se move numa azáfama programada por galerias e corredores. Nessas fileiras contam-se mais de meia centena de voluntários que se somam à equipa de 180 elementos recrutados pelo CCB para um fim-de-semana único. Contas feitas, garante Miguel Coelho, "são seguramente mais de 500". Afinadores são oito, viradores de página 18. Jornalistas, mais de 150 acreditados, entre portugueses e estrangeiros. Depois há toda uma logística de exagero. Há mais de 70 mil folhas de sala a serem distribuídas por quem quiser acompanhar cada concerto em pormenor. Há quase oitenta mil refeições previstas e qualquer coisa como cinco metros cúbicos de água em 15 mil garrafas de 33 cl.
E são exactamente esses números de fartura que apuram o sentido pela diferença. Entre as três dezenas de pianos que se vão movendo entre salas, há um que chama a atenção de todos, leigos e entendidos. Os primeiros, pelo espanto de descobrir um objecto cujo traço antigo contrasta com o seu aspecto novo, pelo teclado ligeiramente mais curto em que brancas e pretas trocam de posição. Os segundos, por saberem que este é um dos quatro pianofortes que se podem achar em Portugal, e um dos dois únicos em posse de privados, como nos explica a pianista e proprietária Helena Marinho à saída do concerto que dividiu com a harpa de Çgidem Bilge Alvaro para tocar obras de Hummel, Dussek e Pleyel, três dos amigos de Beethoven convocados para a Festa.
Entre os 48 concertos de ontem, explica Miguel Coelho, "os vinte da tarde tiveram bilhetes a preços propositadamente mais baixos para servir as escolas e as crianças, mas também para abrir as portas a pessoas de menos posses". Porque "é essa umas das nossas obrigações, tornar a Festa acessível a toda a gente". Também por isso, nesta tarde amena de dia de semana as plateias encheram-se sobretudo à conta de cabeças pequenas e de outras grisalhas.
As idades. António Ribeiro, 76 anos, senta-se direito no sofá, visivelmente preocupado em não amarrotar o casaco castanho estilo inglês e camisa branca impecavelmente engomada. É o único em vigília num "grupo de cinco amigos de provecta idade" que rumaram de Benfica a Belém para apanhar as primeiras horas da Festa. No átrio frente à sala de imprensa, os dois casais que o acompanham não resistiram à tortura do sofá fofo. Dormem os quatro. "Cansaram-se, os velhotes. Viemos cedo, sabe, para evitar a confusão, que isto agora está calmo, mas daqui a pouco já vai ver." Palavra experiente de quem "jamais perderia o melhor acontecimento de música deste país". Em seis edições, só lhe escapou a estreia. "Quando isto começou, era um jovem de 70 anos, tinha melhor ouvido", ri-se. "Enfim, consta que a orelha do Beethoven também não era perfeita."
António acertou. São agora 16.00 e já se sente outro bulício. Frente à sala Kreutzer, a fila alonga-se para enfrentar vinte minutos de espera. Lá dentro, Pedro Burmester prepara os dedos para a sonata para piano n.º30em mi, op. 109, e para a sonata para piano n.º14em dó sustenido menor,op. 27, ambas de Beethoven. Tiago acha o "nomes complicados". Enquanto os movimentos excitados dos dez colegas mantêm ocupada a atenção da professora Mónica, ele aguarda em pose quieta e ar responsável. Tem 11 anos e uma certeza quer tocar piano e até já começou as lições. "Andou toda a semana a falar nisto aos colegas e a fazer-me perguntas", suspira a professora antes de desviar de novo a atenção para a maioria irrequieta. Tiago não liga e só antecipa o momento de chegar a casa e por em prática a estratégia combinada com a mãe. "Vamos convencer o meu pai a vir amanhã outra vez."