Entre a vingança e a moderação
A 187 dias da grande decisão norte-americana, os sinais são contraditórios: Trump ligeiramente à frente nas sondagens nacionais, Biden a recuperar nos Estados decisivos.
A campanha de Biden está longe de ter chegado ao “modo emergência”. As dificuldades são evidentes, mas as perspetivas até novembro continuam a ser positivas. Os 81 milhões de votos obtidos por Joe há quatro anos colocam o atual presidente numa base de partida muito alargada. Mesmo que perca uma boa parte desses sufrágios, as possibilidades de reeleição continuam lá.
No jantar anual com os correspondentes da Casa Branca, Biden voltou a insistir na tecla da defesa da democracia, associando um possível regresso de Trump a uma decisão irresponsável, que poria em risco as instituições políticas norte-americanas: “Trump quer vingança e está ressentido. Prometeu um banho de sangue se perder.” Biden avisou que um novo 6 de janeiro de 2021 (ataque ao Capitólio) é possível se a Democracia não prevalecer: “Cada um de nós tem um papel importante a desempenhar para garantir que a democracia americana perdure. Eu tenho o meu papel, mas com todo o respeito, vocês [jornalistas] também têm. Na era da desinformação, a informação credível em que as pessoas possam confiar é mais importante do que nunca.”
Espirituoso (dentro do tom que sempre marca o discurso do presidente nesses jantares), Biden brincou com a sua idade avançada e, ao fazê-lo, aproveitou para menorizar o rival: “As eleições de 2024 estão a decorrer a todo o vapor. E, sim, a idade é um problema. Sou um homem adulto a concorrer contra uma criança de 6 anos. Trump está tão desesperado que começou a ler as Bíblias que está a vender. Depois chegou ao 1.º Mandamento: ‘Não colocarás outros deuses diante de mim.’ Foi então que a pousou e disse: ‘Este livro não é para mim’.”
Donald Trump nunca esteve presente, como presidente, nos jantares anuais com os correspondentes da Casa Branca.
Mas há 13 anos, em 2011, Trump estava na plateia quando o então presidente Barack Obama o inundou de sarcasmo, ao gozar com o delírio que se criava na direita conspiracionista quanto a uma alegada (disparatada…) ilegalidade de Obama ser presidente dos EUA, para aqueles que acreditavam que teria nascido no Quénia (uma teoria que cresceu de tal modo que levou Obama a ver-se forçado a divulgar o certificado do seu nascimento, em Honolulu, no Havai). A cara de Donald, a tentar disfarçar a fúria por ver-se humilhado pela superioridade intelectual de Obama terá (acreditam muitos) sido relevante para a posterior decisão de Trump de suceder a Barack na Casa Branca.
Para lá de táticas ou estratégias, Joe Biden parece ter a firme convicção de que a maioria do povo americano não quer pôr de novo na Casa Branca alguém como Donald Trump, que surfou a onda iniciada na década anterior de pisar a verdade e usar, sem pudor, a mentira difamante para proveitos próprios. Estará certo?
“Sinceramente, não estou a pedir que tomem partido. Estou a pedir que se atenham à seriedade do momento. Deixem de lado os números da corrida de cavalos, as distrações, os espetáculos secundários que passaram a dominar a nossa política, enchendo-a de sensacionalismo. Concentrem-se no que realmente está em jogo”, pediu o presidente aos jornalistas, nesta fase de arranque dos motores de uma eleição presidencial decisiva para o futuro da democracia norte-americana.
Avisos à Europa e ceticismo pelos dois Estados
Se Biden teme um Trump vingativo, Trump quis mostrar ângulos um pouco menos radicais na entrevista que deu à Time. Logo na imagem de capa, aparece em pose menos desafiadora que o costume, em tons estranhamente discretos para o estilo egocêntrico que o caracteriza.
Por que terá sido? Possivelmente porque Donald sabe que está a perder terreno para Biden entre os independentes. E, acima de tudo, porque, desde 2016, todas as eleições nacionais têm comprovado a tese de que o eleitorado MAGA (“Make America Great Again” - Fazer a América Grande Outra Vez), sendo fiel e mobilizado, não chega para vencer uma disputa presidencial.
Mas a forma, sempre importante na política americana, não é tudo. No conteúdo, Trump continua Trump. Sobre o conflito israelo-palestiniano, lançou: “A solução de dois Estados é muito, muito difícil. Houve um período em que pensei que poderia resultar. Agora, acho que dois Estados vai ser muito, muito difícil. Neste momento, muito poucas pessoas gostam dessa ideia.”
Ora, isto é uma rutura com a posição oficial dos EUA de pugnar por uma solução de dois Estados, como única forma de incluir os interesses de israelitas e palestinianos, sem permitir a extinção de qualquer uma das partes.
Trump volta a interpelar a Europa
Trump admite continuar a ajudar a Ucrânia se a “Europa começar a equilibrar” o apoio financeiro dado pelo Estados-membros da NATO a Kiev.
Na mesma entrevista à Time, o ex-presidente, que o quer voltar a ser (até agora só aconteceu uma vez na História americana e já foi há mais de um século), afirmou que quer que a União Europeia aumente a ajuda a Kiev, aproximando-se dos Estados Unidos que, desde o início da invasão, são o país que mais forneceu ajuda.
“Quero que a Europa pague. Não quero que nada de mal aconteça à Europa, adoro a Europa, adoro o povo europeu, tenho uma ótima relação com a Europa. Mas eles aproveitaram-se de nós, tanto na NATO, como na Ucrânia. Estamos a dar mais milhares de milhões de dólares do que eles à Ucrânia. A Europa não está a pagar a sua justa parte. Não devia ser assim, mas o contrário. Porque eles são muito mais afetados. Nós temos um oceano entre nós [e a Rússia]. Eles não têm. E quando digo coisas assim, é como um ponto de negociação, e fiz um bom trabalho, porque entraram milhares de milhões de dólares recentemente”, alegou o futuro candidato presidencial republicano.
Trump garantiu que não tem qualquer problema com a NATO. E insistiu: “Quero que eles paguem as suas contas. É muito simples. A NATO está bem.”
Numa referência profundamente injusta (até agora, a única vez que o artigo 5.º do Tratado de Washington foi ativado, em 75 anos da história da NATO, foi para proteger os EUA, após o 11 de Setembro de 2001), Trump arengou: “O problema que tenho com a NATO é que não acho que a NATO viria em nossa defesa se tivéssemos um problema. Conheço-os a todos. É uma rua de sentido único. Se fôssemos atacados, muitos dos países da NATO não estariam lá.”
Trump deu a entender que, com ele na Casa Branca, Putin não teria invadido a Ucrânia. Com isso, aproveitou para cair em cima da ideia que, sempre que pode, tenta transmitir: a de que Biden é fraco. “Biden lidou muito mal com Putin. Este nunca deveria ter entrado na Ucrânia. E não entrou durante quatro anos comigo. Eu dou-me muito bem com Putin, mas o repórter [Evan Gerskovich do Wall Street Journal, detido em Moscovo] devia ser libertado e vai ser libertado. Não sei se vai ser libertado sob o comando de Biden.”
Quanto ao apoio a Taiwan, em caso de acontecer uma invasão por parte da China, Trump foi propositadamente vago, destacando que Pequim tem de “entender que questões como esta não são fáceis”.