Em tempo de atropelo

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Termina dentro de dias o prazo de que a Presidente do Parlamento Europeu dispõe para suscitar a pronúncia do Tribunal de Justiça sobre uma questão de relevo para a vida institucional da União. A grande distância do que há pouco acontecia, entre nós, com o recurso do Presidente ao Tribunal Constitucional para fiscalização preventiva de um diploma com atropelos na sua história, é de prever que, nesta altura, o decurso deste prazo europeu não desencadeie qualquer frisson na opinião pública dos Estados-Membros. Mas lá adiante as consequências surgirão.

Na última parte da Presidência polaca da UE, e a tempo da obra ser incluída na sua lista de feitos, foi celeremente aprovada a regulamentação do primeiro pilar do plano Rearm Europe - SAFE , iniciais de Security Act for Europe. Foi-o com a decidida supressão da intervenção do Parlamento Europeu: ficámo-nos, pois, por um regulamento da autoria do Conselho. A base legal utilizada foi uma disposição - inserida num título do Tratado sobre Política Económica e Monetária - que prevê que o Conselho “possa decidir medidas adequadas à situação económica, nomeadamente em caso de dificuldades graves no aprovisionamento de certos produtos, designadamente no domínio da energia” (e ainda “ajuda financeira a um Estado-Membro que se encontre em dificuldades”) - e isto, sempre, sob proposta da Comissão. Foi sob a invocação de “desafio urgente e existencial” que a Presidente Von der Leyen, mais de três anos decorridos sobre a invasão da Ucrânia (poucos meses, é certo, depois da chegada de Trump) , promoveu que o processo legislativo ordinário e o Parlamento Europeu fossem postos de lado.

É tão nítida a colisão deste procedimento com o que se dispõe no Tratado de Lisboa que os serviços jurídicos do Parlamento consideraram não estarem reunidos os requisitos para a sua aplicação. A Comissão dos Assuntos Jurídicos (JURI) rejeitou-a por unanimidade e, por voto secreto - 20 dos 23 membros a favor e 3 abstenções - votou a favor do recurso ao Tribunal de Justiça, propondo à Presidente Metsola que o fizesse intervir nos termos previstos no Tratado. Diga-se só que, não constituindo o Parlamento Europeu, a vários títulos, um verdadeiro Parlamento, faltam-lhe meios adequados para reagir a uma situação como esta, correntes em democracias constitucionais: na visão de muitos, resta-lhe esperar que o Tribunal decida. É do conhecimento público uma carta que a Presidente do PE dirigiu aos Presidentes da Comissão e do Conselho Europeu mencionando os riscos do “dano causado à legitimidade democrática”, em resultado do “enfraquecimento das funções legislativas e de controlo do Parlamento” assim gerado. Ficar-se-á por aí?

Em qualquer posto, presidentes complacentes em relação a atropelos nunca ajudam. À frente de instituições que se denominem Parlamentos, mais relevantes ou menos relevantes, os malefícios causados à democracia são sempre seguros.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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