Em forma de carta a um antigo procurador-geral da República

Publicado a
Atualizado a

(…)

Tantos anos depois, fico muito impressionado - e obviamente feliz - por ver que são tantos os nossos pontos de coincidência na avaliação da realidade actual. Vejo nas suas recentes tomadas de posição um valioso contributo para que se ponha termo ao que não deve prosseguir.

Para que não subsista dúvida, enumerarei esses pontos, restringindo-me àquelas questões que tem abordado e a que as nossas instituições democráticas podem e devem dar pronta resposta. Quanto a outras, seremos nós todos, como evocou, elementos de um “coro de tragédia grega” (sem prejuízo do importante papel que nela cabe a essa voz colectiva).

(i) Não consigo dizer melhor: “o Estatuto do MP foi usado para tornar a hierarquia uma solução fluida e por vezes contraditória. Os magistrados do MP da linha sindical - e outros dos quadros superiores - quiseram ter uma autonomia que os equiparasse praticamente aos juízes, e conseguiram levar isso ao Estatuto”. Como não vivemos numa República que tenha deferido o poder de legislar aos procuradores (dizia-o já em 2008, recorda-se ? ), esse erro, na sua dimensão mais nociva, não é deles. Haverá que emendá-lo depressa. Pena que isso não ocorra antes da nomeação de novo PGR - mas irá sempre ser necessário ouvi-lo no Parlamento sobre o seu entendimento acerca de hierarquia e responsabilidade, afinal o legado dos constituintes.

(ii) “Não há nada que justifique que os processos tenham uma investigação de oito ou mais anos”, como exemplifica, e ter uma pessoa sob escuta quatro anos “é uma coisa inadmissível”. Diria: abuso de poder. Não julgaria que fosse necessário acrescentar ao sistema jurídico qualquer norma, muito menos princípio, para evitar que responsáveis coexistissem com tais “inadmissibilidades”. Mas receio agora que um legislador democrático tenha de ser também chamado a ocupar-se de tais “contra-sensos”, como lhes chama.

(iii) Os conselhos superiores, se nisso estivessem interessados, já poderiam ter tido acesso a toda a informação relevante sobre o recurso a escutas, como bem aponta, e aqui reforço. Em 2005/6, surpreendeu-me a elevadíssima taxa de aprovação, por parte dos juízes, dos pedidos apresentados pelo MP nessa matéria. Numa reunião do Conselho Superior de Magistratura sugeri a criação de um grupo de trabalho constituído por membros desse Conselho, integrando membros designados pela Assembleia e pelo Presidente - lembro-me de quem lá estava - que se debruçasse sobre todos os dados que se podiam já reunir acerca do fenómeno: impunha-se não o ignorar! Nada aconteceu, escuso de o dizer - e seguiram-se, logo depois, soluções legislativas mais exigentes, de que os “contra-sensos” que refere exibem o incumprimento. E não se pode atribuir ao MP responsabilidades que pertencem aos juízes: um erro que se tornou comum. Como bem disse, “há que retirar consequências de os tribunais serem órgãos de soberania”, devolvendo às decisões dos juízes lugar compatível na distribuição de responsabilidades.

(iv) Tem toda a justificação “temperar” - para usar a sua palavra - a actual composição do Conselho Superior do Ministério Público “em benefício de pessoas estranhas à magistratura”. É relevante que seja um antigo PGR a assumir a posição de que deveriam ser “nomeadas pelo poder político” - democrático, realço. Gostaria que mais soluções fossem consideradas, embora saiba que o recurso a outras origens pode nem sempre correr bem (penso no recurso às universidades e à Ordem dos Advogados para os júris de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que a lei adoptou em 2008 e nunca foi publicamente avaliado).

(v) No recrutamento dos juízes, é fundamental ter em conta, como defende, que “não devem apenas ter uma qualificação técnica ou jurídica, devem ter mundo, devem ter uma experiência vivida”. Sabendo de ideias e propostas que circulam, é essa uma tomada de posição - de que por inteiro me mantenho adepto - de grande oportunidade.

(vi) Os tribunais penais devem ser o mais possível genéricos - e há que excluir soluções como aquela “que causou problemas em termos de juiz natural” (algo de fundamental para a legitimação!) e igualmente “problemas de super-especialização no crime”, “uma má solução mesmo quanto à instrução”. Fica tudo dito.

(vii) Recebendo ele, em tempo útil, as substanciais melhorias de que carece, coincido na opinião de que o nosso sistema de MP, nos seus fundamentos, “não deveria ser mudado”. Essa será a opção boa para a democracia - assim as instituições não faltem às mudanças necessárias. Só o saberemos passando dos sinais às obras.

No mais - e um dia será contada a história quanto ao segredo de justiça - encontro pontos onde as valorações, saudavelmente a meu ver, divergem. Mas não devemos nós valorizar, nas complexas democracias actuais, um “consenso de sobreposição”? Oxalá um futuro PGR, em indispensável audição parlamentar, possa expor, perante os deputados que elegemos, de modo assim tão claro, os seus propósitos para o cargo - e, para isso, tirar partido do seu notável depoimento. (…)

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt