Doença contagiosa
Até há pouco tempo praticamente eliminado no Mundo Ocidental, o sarampo tem ressurgido nos últimos tempos como doença de preocupação em diversos países onde já tinha deixado de o ser, graças a uma combinação de fatores que inclui a importação de casos decorrente das correntes migratórias e o crescimento dos movimentos antivacinação. Portugal, segundo dados enviados ao DN pela Direção-Geral da Saúde, continua a estar bem protegido, com apenas um caso registado este ano e uma elevada taxa de cobertura vacinal. Mas os números de infeções têm subido tanto na Europa - Espanha admitia na semana passada “um número preocupante”, com 107 notificações desde o início do ano -, como nos EUA, onde está em curso o pior surto da última década, tendo sido já confirmadas duas mortes (as primeiras desde 2015) e mais de 220 casos só nos estados do Texas, onde o surto começou, e do Novo México.
O cenário ganha contornos mais preocupantes quando sabemos que a Ciência é hoje ameaçada pela crendice ideológica que se sentou na Casa Branca, caricaturada na escolha de Robert F. Kennedy Jr., conhecido pelo seu “ceticismo” científico e vacinal, para responsável pela política de Saúde. A postura de Kennedy face ao crescimento do surto de sarampo tem, de resto, confirmado todos os sinais de alarme. Começou por desvalorizar o surto até ser obrigado, pelos números, a admitir preocupação, numa intervenção na Fox News, onde, ainda assim, catalogou a vacinação como uma “escolha pessoal” e preferiu destacar “tratamentos” como vitamina A e óleo de fígado de bacalhau.
O ressurgimento do sarampo, tanto nos Estados Unidos como em várias partes do mundo, revela sobretudo uma crise que vai além de um mero surto de uma doença previamente controlada. É um sinal claro de que estamos à beira de um retrocesso na Saúde Pública global. Um recuo de décadas suportado de forma inequívoca por políticas que desvalorizam a Ciência e enfraquecem as instituições de Saúde Pública. Como o voraz desinvestimento na Ciência assumido pela Administração Trump (& Musk), com despedimentos em massa e cortes de fundos para programas de investigação, que neste fim de semana levaram milhares de cientistas às ruas, para protestos em diversas cidades nos EUA e na Europa.
É isso que promove a seita ideológica em Washington, mais preocupada em patrocinar investigações que procurem uma ligação (já várias vezes negada pela ciência) entre vacinas e autismo para agradar aos seus crentes fiéis - como noticiou esta semana a Agência Reuters - do que em cuidar efetivamente da saúde de todos. E este ataque à Ciência é mesmo a doença contagiosa mais perigosa que enfrentamos por estes dias.
Editor do Diário de Notícias