Do romantismo ao ressentimento

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Na viragem para o século XIX, um punhado de pensadores alemães, reunidos numa pequena cidade universitária a 250 quilómetros de Berlim, costurou uma nova ideia: a do “eu” como centro de todo o conhecimento e da liberdade. Andrea Wulf chamou-lhes Magníficos Rebeldes - poetas, filósofos, visionários. Inventaram, em grande medida, o Romantismo e a crença no Ich (Eu). E assim passámos a olhar para dentro, em vez de apenas para fora.

A modernidade embriagou-se de subjetividade. A autoajuda - uma espécie de filha bastarda desta filosofia - empacotou esse “eu” num produto vendável, com promessas de propósito e performance. Medita. Agradece. Empodera-te. Reinventa-te. E, sobretudo: protege o teu espaço emocional.

É aí, nesse território supostamente íntimo, que as fronteiras começam a desenhar-se. O “eu” quer espaço. O “eu” quer conforto. O “eu” sente-se ameaçado - e começa a apontar o dedo.

Na cronologia dos acontecimentos que este pensamento desencadeou, a Alemanha continuou a pôr a tónica no Ich, expandindo-o até se transformar num “eu” nacionalista, sedento de território e disposto a eliminar tudo o que percecionasse como ameaça. A pureza - esse “eu” imaculado e inicial - tornou-se um objetivo.

A História tem o hábito de se repetir. E a verdade - não a minha, nem a sua, mas a verdade-em-si - é que, em Portugal, o dedo que aponta já tem alvos.

A narrativa, mais ou menos subtil, baseada num “eu” que se sente em risco, vem ganhando força: “não há casas por causa dos imigrantes”, “os salários estão baixos porque eles aceitam tudo”, “o país está a rebentar”. O “eu coletivo” português, que ainda se define pela hospitalidade, começa agora a cerrar os dentes, centrado num “eu” exclusivista, desconfortável, cada vez menos aberto aos factos - tal como eles são.

Convém lembrar que a economia foi impulsionada pelo turismo, que por sua vez depende do trabalho dos imigrantes. Os mesmos que agora são tratados como ameaça.

O “eu coletivo” sente-se invadido, mas talvez o problema seja outro: estamos à deriva, sem saber como navegar numa modernidade que nos obriga a conviver com uma comunicação supersónica, bombardeados por argumentos contraditórios e rodeados por uma inteligência artificial que parece querer substituir-nos. No fundo, ainda não sabemos como olhar para este novo mundo. O “eu” vacila. Percebe que já não é o único a escrever, a decidir, a criar. E isso assusta.

Se há ameaças também há oportunidades, como a de nos libertarmos das tarefas repetitivas e abrirmos espaço para o que é verdadeiramente humano - a empatia, o cuidado, o saber acolher. A tecnologia não é inimiga. A imigração não é ameaça. O problema é - quase sempre - o medo. E quando o medo se instala, constrói muralhas.

Mas há sempre uma alternativa: em vez da desconfiança, olhar para fora com curiosidade. Com a abertura de quem quer, de facto, perceber de que modo o crescimento económico pode ser aproveitado para melhorar vidas. Com a vontade de encontrar soluções que se convertam em felicidade e em mais liberdade.

Afinal, ser livre não é colocar o nosso “eu” acima de todas as restrições, mas construir, juntos, um bem-estar que seja coletivo.

Aceitemos que o “eu” pode ser plural e partilhado. Talvez a próxima revolução não precise de mais rebeldes magníficos - mas de cidadãos que formem o seu conhecimento com base em factos concretos. E que compreendam que os verdadeiros inimigos não vêm de fora.

Secretária-Geral da AHRESP

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