Discricionariedade, oportunidade, tempo incontrolável

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Há vários meses atrás, sublinhava aqui a singularidade das condições em que iam decorrer as legislativas: seria sob prévia divulgação, por parte do Procurador-Geral da República, de duas "acções de prevenção" (art. 1º da Lei nº 36/94, "Medidas de combate à corrupção"), uma visando o Primeiro-Ministro e outra o líder do partido mais votado da oposição!

É verdade que a segunda das figuras visadas, apurados os votos e perdida a posição, foi a breve prazo liberta do efeito estigmatizante daí decorrente (cessante causa, cessat effectus). Mas não era então previsível que quem optou por essa via e essa divulgação - ocorrida a meio dum distante Março - ainda não tivesse conseguido assegurar a conclusão da "acção de prevenção" que visa o Primeiro-Ministro, entretanto reinvestido no cargo. Foi revelado que constituiu objectivo concluir a "investigação" preventiva "antes do início do ciclo político" e, depois, fazê-lo "antes das férias judiciais" - objectivos, ambos, incumpridos. E à medida que os meses se somam e as justificações se sucedem, vimos assistindo a um esforço continuado de banalização, em que o próprio visado divulga ir dedicar uma parte dum dos seus dias de trabalho a reunir elementos que lhe foram há pouco solicitados ("nada demais", "completamente normal", comenta).

Para se ter uma ideia dos riscos que o recurso a essa solução (actos e procedimentos de "recolha de informações" diz a lei) e a sua oportunidade e prolongamento comportam, basta regressar, por momentos, a argumentos que foram levados aos debates parlamentares que precederam a sua criação, por iniciativa dum governo de Cavaco Silva. Fomos vários a fazê-lo, mas irei cingir-me às formulações empregues por Narana Coissoró, então deputado pelo CDS. Narana fez avultar - e isso será hoje consensual - que "esta matéria do pré-inquérito ou da averiguação pré-processual é administrativa e não judicial. E sendo uma matéria administrativa está sujeita a critérios de discricionariedade, de oportunidade e de temporalidade incontrolável" (sic). Em sede de combate à corrupção, num Estado de direito, haverá critérios mais inadequados do que estes, que temos vindo, neste caso, a testemunhar? Agravando o efeito, poderíamos acrescentar agora a essa lista a recentemente noticiada, sem mais pormenores, "alteração das regras de comunicação" aplicadas.

Na configuração da "acção de prevenção" que foi para este caso escolhida, ficava excluído o benefício, esperado e exigível, dum "controlo judicial sobre as averiguações" - explicitava Narana. Conferindo ao ponto enorme relevo, interrogava-se então sobre a hipótese de arquivamento: "Qual a forma como serão arquivadas estas averiguações? Pergunto: que espécie de documento?". E desenvolvia, já então, o problema do acesso ao resultado dessa "recolha de informações", perspectivando a variedade de utilizações que poderiam vir a estar em causa. Ninguém lhe negará hoje a presciência.

Opção discricionária pelo emprego de um recurso de natureza administrativa, com ausência de prazos legais e de subordinação a controlo judicial, incumprimento de objectivos anunciados, alteração ad hoc nas regras de comunicação a aplicar … são tudo, hoje como ontem, num Estado de direito democrático, marcas negativas que em nada favorecem a confiança dos cidadãos.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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